Entre irmãos

por Álvaro André Zeini Cruz

A campanha de lançamento de Um Lugar ao sol é das mais tímidas realizadas pela Globo nos últimos anos. A antecessora (inédita) Amor de mãe, por exemplo, iniciou sua campanha cerca de cinco semanas antes da estreia, enquanto as chamadas da novela de Lícia Manzo não chegaram a quatro semanas no ar. Fosse só um problema quantitativo, vá lá, mas há também o qualitativo, e, neste caso, o Padrão Globo de Qualidade pareceu mais interessado em aplicar camadas e mais camadas de filtros sobre as imagens, como se telenovela fosse uma superfície de TNT e não coisa de trama (talvez seja efeito da rasa Verdades secretas II, que suportei ver por dez minutos). A impressão é de que a “Vênus Encabulada” não lidou bem com o atraso da novela (por conta da pandemia) e resolveu platinar as imagens (processo que tem como ápice a abertura “mamãe, aprendi a usar o After Effects” e que não faz jus a “Sulamericano”, música do Baianasystem). Um Lugar ao sol chegou ao público como mais uma história de gêmeos; pior, gêmeos tapa-buracos. Sorte que a narrativa – que é sempre maior do que a publicidade –, por ora, desfez esse equívoco.

O primeiro capítulo apresentou o tronco da trama; os galhos, como diria Renata Pallottini, virão nos capítulos seguintes. Cauã Reymond vestiu a peruca (literalmente) e se desdobrou nos gêmeos Christian e Christopher. Mas a dupla jornada não deve durar, já que a morte de Christopher abrirá a brecha para que Christian assuma seu lugar e sua boa vida. A questão ética em torno da usurpação não é nova; tangencia inclusive o atual Vale a pena ver de novo – O Clone, de Glória Perez. É cedo para predizer algo sobre o acabamento que Manzo dará a essa conhecida arquitetura melodramática, muito embora o capítulo inicial tenha se desdobrado mais no regime da economia do que no da redundância. 

Mas o diabo mora nos detalhes, e é nos detalhes que a novela já desponta algum potencial. Falo especificamente de uma cena, aquela em que Christian conversa com o irmão; não o gêmeo, o de criação, Ravi, feito por Juan Paiva na interpretação mais luminosa deste capítulo inicial. Os dois se desentendem porque Ravi, que se encantara por Lara (Andréia Horta), flagrou um beijo entre a moça e o irmão. A cena começa num travelling out dos personagens pela rua, e, embora Ravi esteja em primeiro plano, o foco está em Christian, que anda no encalço do caçula despejando desculpas. Plano e movimento perduram até o corte, que não só mostra a virada de Ravi em direção ao outro, como induz a um avanço da câmera de encontro ao rosto agora em lágrimas. Puro suco de melodrama, que, de tão rasgado, parece recuperar uma pureza, uma genuinidade.

Lícia Manzo consegue esse tipo de efeito em suas melhores cenas, que, curiosamente, são sempre as mesmas – aquelas que envolvem diálogos duros entre irmãos. Foi assim no diálogo-embate entre as irmãs Ana (Fernanda Vasconcelos) e Manuela (Marjorie Estiano), numa cena cultuada pelos fãs de A Vida da gente. A relação fraterna também alicerçou sua novela seguinte; Sete vidas narrava os encontros e desencontros de irmãos biológicos nascidos de doações de materiais genéticos. Alçada ao horário nobre, Manzo surge com essa história que, a princípio, interessa menos pelos gêmeos com personalidades opostas do que pelas negociações afetivas entre esses irmãos de vida e coração. Se há algum frescor nas novelas de Manzo (torçamos para que os filtros-celofanes não o sufoque) é justamente esse descolamento parcial da trama romântica, que acaba sobreposta por essas tramas fraternas, usurpadoras de um lugar-comum do folhetim. Cauã, que já interpretou gêmeos em Dois irmãos, está bem, melhor como Ruth, digo, como Christian, do que como Christopher. O elenco com nomes que pouco têm aparecido em novelas (Andréa Beltrão, Denise Fraga, Mariana Lima, Natália Lage, Regina Braga) também é um chamariz, obviamente desperdiçado pela equipe de marketing, que, a esta altura, deve estar buscando fontes para a grafia de Juma Maruá nas chamadas de Pantanal.