por Álvaro André Zeini Cruz
Por mais estranho que pareça, a família Madrigal (da etimologia madrigale, maternal), de Encanto, é apenas parcialmente matriarcal. É verdade que o poder – com dimensões políticas e mágicas que se entrelaçam – é exercido pelas mulheres da casa, mas Alma (María Cecilia Botero), a avó, consuma um matriarcado ambíguo, que, ao mesmo tempo, se sustenta e se autossabota: ela visa preservar o lar (e a comunidade que o estende) sob essa regulação feminina, mas, para isso, aciona um sistema fetichista, baseado em regimes de ilusão e crença, de desejo e proibição.
Quando Mirabel (Stephanie Beatriz) se contrapõe à avó, o conflito geracional se alicerça sobre um fato inconveniente: Mirabel é desprovida do encanto que abençoa a descendência Madrigal. Inconvenientemente ordinária numa árvore genealógica extraordinária, ela representa a concretização de um presságio feito por Bruno, de quem a família não fala. Além disso, enquanto a neta vê a casa rachar e se desfazer, a avó garante que as estruturas estão em ordem, que “a magia é forte”. Curiosa, desejando saber, Mirabel começa uma jornada doméstica, uma investigação que envolve conversar e desvendar as almas das mulheres da casa. Começa por Luísa, cujo poder é uma força física que se esvai justamente após a música-reconhecimento apontar um caminho – “under the surface […] everything is collapsing […] ilusions and emotions are for sale”.
Mirabel, então, parte para as entranhas da casa. Nas cavernas subterrâneas, descobre Bruno, o tio banido, que considera sua magia uma maldição e quer poder escolher o próprio dom (ele deseja atuar, ser outros alguéns além do que esperam que ele seja). Ele viu Mirabel diante da casa rachada. A construção, por fim, se desfaz depois que Mirabel se reconcilia com a irmã e encara a avó, possuindo as verdades escondidas dessas outras mulheres. O embate final entre avó e neta, é também o confronto entre ilusão e verdade, entre imagem e entranha, entre escopofilia e epistemofilia.
Em sua jornada pela casa-caixa, Mirabel recupera a História da família. Descobre que uma cicatriz deixada pelo patriarcado fez com que Alma se armasse das marcas patriarcais da ilusão e do autoritarismo (que culminam em forma de canção em We don’t talk about Bruno) pela sobrevivência dela e dos seus. Sem querer, permitiu com que a força traiçoeira do patriarcado se infiltrasse, alicerçando uma casa aparentemente feminina, mas matriarcal só nos acabamentos. Assim, a única saída é torná-la ruína e, depois, reconstruí-la. Mais do que a jornada, é a promessa de Mirabel que se completa quando ela descobre que seu dom é querer saber sobre si e sobre os seus (poder simbolizado na maçaneta, que conclui a reconstrução e abre as portas da casa). É provável que seja a melhor animação musical da Disney desde Aladdin (1993). De quebra, esbarra em questões de outro filme recente: o também encantado Madres Paralelas, de Pedro Almodóvar.