Efeito Hirszman

por Álvaro André Zeini Cruz

Hora do almoço. Tião (Carlos Alberto Riccelli) e Jesuíno (Anselmo Vasconcelos) confabulam entre as garfadas desferidas no bandejão. O último diz; diz não, decreta: “é preciso levar vantagem em tudo”. Da conversa entre copos plásticos e bandejas platinadas, vai-se, através do corte, à saída da fábrica; consequentemente, à fachada, espécie de amontoado gigantesco de cilindros e cubos, copos e bandejas cuspidores de fumaça escura. A sopa, seguinte, mal lança vapor: a vasilha singela abre a cena, surgindo onde antes havia a fábrica. O pai, que não se senta à ponta, porque a mesa é quadrada, reclama: “outra vez sopa?”. É Otávio, mas é também Gianfrancesco Guarnieri, autor de Eles não usam black-tie, que ouve de Romana (Fernanda Montenegro) — “e olhe lá!”. Quando Maria (Bete Mendes) diz não querer para “não abusar”, a dona da casa retruca enquanto serve: “onde come quatro, come cinco”.

A justaposição da montagem é clara: árduo e hereditário, o trabalho na fábrica é o que origina o jantar modesto, partilhado em quatro, cinco, seis, ou quantos necessitarem. Do pão, a conversa passa ao ganha-pão: Otávio conta sobre as demissões a dedo entre os operários mais politizados, abrindo a brecha que escancarará, ao longo da cena, o abismo entre ele e Tião. Pois se Tião é filho de Otávio, é também filho da ditadura, urdido, soldado e polido sob o medo do regime militar, e a consequente individualização dos sujeitos. O pai ralha “ergue a cabeça, moço”, “os tempos são outros”. Mas Tião é poça d’água, transmutado para ser contido em bandejões, tigelas e fábricas. Quando Tião sai, Romana pontua que é preciso reforçar a porta, fala com sentidos múltiplos que reforça a crise do lar. Tião obviamente não entenderia; não é homem de metáforas e subtextos. A montagem, no entanto, é: volta a agir, não para mostrar a porta, mas centenas, talvez milhares de portas que se amontoam nas casas simples da comunidade, numa geometria arquitetônica que contrapõe qualquer linha de produção.

A mesa familiar retorna na cena mais célebre de Eles não usam black-tie: de luto pela morte de Bráulio (Milton Gonçalves), Otávio e Romana se entregam à tarefa doméstica de separar feijões. Enquanto ele trabalha seu monte, a esposa goteja os grãos noutro vasilhame; um pedaço de alumínio amassado, mais castigado do que o recipiente da sopa, mais vivo do que os tabuleiros da fábrica. Quando Otávio entrega sua “safra”, os feijões deixam de garoar: pelas mãos de Romana, tornam-se corpos, tiros e lamentos contínuos, retumbantes desses anos de uma pseudomodernidade arranhada e ensanguentada. O corte e a ponte musical costuram os grãos à coroa de flores: não um ornamento fúnebre estático, mas um arranjo floral que marcha como abre-alas do luto e da luta, com Otávio carregando o caixão e Romana e Maria de braços dados. Como bem disse Daniel Caetano em mesa recente da Socine (ainda que não exatamente acerca deste filme), havia nestas cercanias (de lugar e tempo) um cinema que não se acabava em melancolia paralisante, um cinema apontava adiante, inquieto por reconstruções — “Ânimo!”, diria Otávio. Entre portas e tigelas, grãos e flores, Hirszman cimenta seus tijolos para que estes se choquem, decompondo-os em terra e areia não empoçadas, mas em água corrente, em movimento. Kuleshov, Eisenstein e cia ficariam orgulhosos.