Não falemos do cinema. Não por ora.
Falemos antes da linguagem, organização sonora ou visual paradoxalmente complexa e incipiente. Falemos das articulações entre vogais e consoantes, que se embaralham para tornarem-se sílabas. Falemos delas, as palavras, que balizam-se em tentativas incansáveis de nos relacionarmos para que, assim, possamos invadir um pouquinho o outro, seja pela cabeça ou pelo coração. Falemos dessa necessidade de reverberar sobre o outro para que sejamos lembrados. Falemos da precisão do registro para que não sejamos esquecidos.
Falemos da morte e do medo que ela provoca, combustível impreterível para que os registros se realizem. Falemos da vida, tempo imponderável em que a alma deixa marca sobre materiais sensíveis do mundo. Falemos dos pedacinhos das almas daqueles que escrevem e que circulam por entre os parágrafos. Falemos dos que aqui escreveram e dos combates que travaram a cada tecla, a cada página em branco ansiosa por ser preenchida.
Falemos das lascas espirituais que se digladiaram e consumiram essas almas estilhaçadas nas palavras. Falemos das fantasmagorias entranhadas nas imagens e nos sons decalcados do mundo. Falemos dos registros realizados por vivências e repertórios singulares. Falemos dos paralelismos, dos tangenciamentos e das intersecções, mas falemos principalmente das colisões tão vitais à crítica.
Falemos, assim, dos encontros entre Álvaro, Juliana, Gabriel, Felipe, Marcella, Liene, Renato, Phillippe, e tantos que por aqui falaram quase que livremente, sem o engessamento dos hypes e da pautas. Falemos dos olhos que, após os créditos, por aqui passaram. Falemos da generosidade de transportar para a luta individual tantas vozes dissonantes. Falemos da coragem em abrir-se à crise.
Falemos, enfim, de cinema. Falemos das colisões inusitadas. Falemos da vizinhança entre Hughes e Duras, Ozu e Panahi, Bowie e Coutinho, Corman e Oliveira, entre figuras cujos corpos nunca se tocaram, mas que aqui estiveram lado a lado. Falemos de Gilmore Girls e Hou Hsiao-Hsien, de The O.C. e Horror Palace Hotel, de Bakuman, Bjork e Marvada Carne.
Falemos do quanto falamos. Foram 145 textos em pouco mais de dois anos. Foram inúmeras crises desencadeadas por essas imagens e sons sempre implacáveis.
Falemos, por fim, do fim, que se dá porque é nossa única certeza, além de nosso maior clichê. Fim que, aliás, resvala na dicotomia cinematográfica “presença e ausência”, pois se dá e não se dá, já que as palavras que aqui estão, aqui permanecem, assim como permanecem nos leitores e em nós próprios. Não significa que permanecerão imutáveis, pois, certamente, encontrarão outras crises, outros questionamentos, outras batalhas a serem superadas ou não (algumas nunca serão). De constante à crítica, só mesmo seu potencial de se rearticular, de ser eternamente um estágio, de jamais se encerrar. Só há fim quando tudo é morte. No mais, sempre haverá vida, e, portanto, sempre haverá crise. Sempre haverá crítica e, portanto, é melhor fazê-la com afinco, com amor.
O fim aqui é protocolar, burocrático, talvez nem mesmo irreversível seja. A vida continua, para nós e para os filmes. Se acreditássemos num fim, não escreveríamos regidos sob um título que evoca justamente tudo o que se abre quando se encerra a última cena. O Pós-créditos é sempre só o começo.
Boa leitura.
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Nesta edição, Liene Saddi busca Elena e encontra outras sereias; Felipe Cruz decifra a fala das Gilmore Girls; Karin Silva brinca com o multifacetado Deixa Ela Entrar e Guilherme Godoy aterrisa no Planeta Fantástico. Álvaro André Zeini Cruz mergulha em Aquarius, mas volta à superfície a tempo para as festas com Agora Seremos Felizes, assim como Juliana Maués, que fala de O Natal de Charlie Brown. Há, por fim, a tradicional lista de melhores do ano e outras duas elencando aqueles que, para nós, foram os melhores filmes e as melhores séries dos anos 2000.
Cabeçalho com parte dos créditos de A Última Noite, de Robert Altman.
Álvaro André Zeini Cruz
editor