por Álvaro André Zeini Cruz

So, goodbye, my dear, dear world of a father.
Episódio 9, 4ª temporada. Do altar, as palavras de Shiv (Sarah Snook), dispensadas ao caixão do pai, badalam dor e libertação. Ecoam das abóbodas de “Igreja e Estado” a “De olhos abertos”, episódio final de Succession, quando assumem a forma dessa promessa que intitula o episódio.
Corta para:
427 a. C. “Édipo Rei”. Abandonado ainda bebê, Édipo desconhece a predição que o separou dos pais biológicos — o Rei Laio e a Rainha Jocasta. As peripécias da tragédia, no entanto, fazem com que o destino prenunciado se cumpra e, ignorante de sua origem, Édipo mata o pai e desposa a mãe. A descoberta tardia do parricídio e a do incesto desenlaça a tragédia com a imposição das autopenitencias: Jocasta se suicida e Édipo arranca os próprios olhos; cego, proíbe retroativamente o desejo pela mãe. A tragédia engendra desejos e proibições, pulsões e privações que serão basilares para a psicanálise pouco mais de dois milênios depois.
Corta para:
1924. Freud usa Édipo para conjecturar um dos fundamentos da psicanálise; a tragédia é realocada para exemplificar uma operação psicológica inconsciente que, para o pai da psicanálise, todo ser humano vive na infância. O Complexo de Édipo estrutura desejo, rivalidade, proibição e recalque na triangulação entre pai, mãe e filho; segundo Freud, o desejo (inconsciente) da criança pela mãe ou pelo pai desencadeia uma rivalidade com a outra parte parental, que, quando superada — em processos que envolvem admiração e identificação — compõe o dispositivo de controle das pulsões (o superego) e a lapidação da personalidade (o ego). Mas Freud avança nas tragédias e localiza Hamlet como um herdeiro de Édipo, traçando diferenciações entre personalidades e contextos históricos. Se em Édipo, “a fantasia infantil desejosa que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada como ocorreria em um sonho”, em Hamlet, “ela permanece recalcada; […] só ficamos cientes de sua existência através de consequências inibidoras”[1]. Para Freud, o destino trágico em Hamlet é postergado pelo titubear do herói, que revive o complexo sob a tônica da admiração por aquele que desposa a mãe Gertrudes — o tio Cláudio, que assassinara o irmão pelo trono.
Corta para:
28/05/2023. Episódio 10, 4ª temporada: “De olhos abertos”. O episódio começa com Shiv e Kendall (Jeremy Strong) contando os votos que definirão a venda (ou não) da Waystar Royco; percebem que Roman (Kieran Culkin) pode definir o futuro da empresa. Na dianteira, Shiv se espanta ao encontrar o irmão na casa da mãe Caroline (Harriet Walter) com o supercílio suturado (no episódio anterior, Roman acabara atropelado pela “plebe” ao descer da torre). Essa mãe — que em outra ocasião disse que não deveria tê-los tido — admite sua incapacidade de cuidar dos olhos do filho; ela alega ter aflição de olhos, esses “face eggs” responsáveis pelo sentido mais suscetível ao conglomerado midiático que faz dos Roy bilionários. É um comentário que pode parecer um detalhe, não fosse Roman um jovem Édipo em estado constante de penitência.
Roman talvez seja a chave para tentar elucidar os olhares deste series finale. Isso porque ele é um Édipo com complexo de Édipo: preso na fase fálica (e compulsivo em enviar fotos do próprio pênis), ele compensa a falta materna pela relação-prótese que tem com Gerri (J. Smith-Cameron) e vive uma retroalimentação entre o sadismo desajustado e a espera das repressões humilhantes, que dão a ele um prazer inacabado. Com a triangulação incompleta (as representações maternas são apenas circunstanciais), resta a Roman permanecer nesse lugar que esbarra na devoção ao pai, sem que isso ultrapasse à fase de latência, isto é, a dissolução do Complexo de Édipo, quando a personalidade é reajustada para ir além da relação parental. Dos filhos de Logan Roy (Brian Cox), Roman é visivelmente o mais imaturo, o menos propício à vida social, algo que se desdobra do flerte com o fascismo ao atropelamento que faz com que ele quase perca a visão (e perderia, se dependesse da mãe). Então, surge Hamlet.
Hamlet é Kendall, aquele que, segundo Freud, é o Édipo revisitado, não tanto pela luz no desejo ou na penitência, mas pelo recalque que se consolida como hesitação. Ainda que Succession não explicite, Kendall aparenta ser maníaco-depressivo, o que colabora para que ele hesite em romper com o Rei (ou vingar-se dele), a não ser quando, como em Hamlet, isso se dá em rompantes. Esses impulsos, porém, logo abrandam, seja nas conciliações narrativas, seja nas crises de consciência que Kendall (como Hamlet) tem — o episódio em que ele se desespera à procura do presente dado pelos filhos demonstra a consciência de que ele “não é melhor do que o pecador a quem deve punir” (e cito Freud sobre Hamlet).
Retirados na casa materna — mas com a mãe como ausência quase completa —, Roman, Kendall e Shiv suspendem o histórico de rivalidades e traições para realizarem um ritual de “cura”: uma regressão que restaura a infância em duplo sentido, já que, na cena na cozinha (cômodo-coração dos espaços domésticos), há uma harmonia não constada nos relatos que sempre tivemos da infância original. Nessa brincadeira, Kendall parece-lhes, enfim, um rei possível, porque aparece como um monarca lúdico, imaginado por essa infância revivida e curada, afastando-se de ser uma réplica mal-acabada do pai que está morto (mas só como corpo e só por este instante). Isso porque o fim da reinação consagra o novo rei com uma ironia: para merecer a coroa, Kendall precisa tomar uma taça “envenenada”. Então, ele é coroado com o próprio veneno. A brincadeira acaba nesta que, como revelado pelos produtores, foi a última cena da série a ser gravada (cura pelo menos aos atores). Mas o episódio continua. De volta à casa do pai, os irmãos assistem uma gravação de Logan também num momento de brincadeiras, cercado dos seus (e Connor, o primogênito constantemente excluído, é o único com o pai). De lá, voltam à torre do castelo. Ao escritório.
Na sala do pai, Roman é o primeiro a hesitar; Kendall, então, dá o abraço que abre os pontos na sobrancelha do irmão. O sangue marca a ameaça de uma nova cegueira a esse Édipo reconhecível a olho nu, de tão raso. A cena termina com uma articulação de imagens — uma escultura (um elmo), uma gravura (Shakespeare?), uma capa de revista (Logan). Na sala de reuniões, é a vez de Shiv vacilar na encenação dos olhares, que desviam de Kendall e tentam ver a face oculta (o corte reaberto) de Roman. A hesitação se torna epifania quando Kendall evoca a memória do pai, desvelando a si próprio como farsa (que vem depois da tragédia), boneco inflado pelo fel entranhado pelo pai ao longo dos anos, cópia volátil (e volúvel) que não ressuscita nem restaura o patriarca original, que, bem ou mal, servia de ponte entre eles e o mundo. Hamlet aqui é simulacro de um símbolo e flutua neste mundo de imagens desenraizadas.
Na última sala — todas elas com paredes de vidro para que tudo seja visto —, Shiv constata a farsa: Kendall não é Logan, mas uma continuidade fajuta, inábil em garanti-los porque é incapaz de sustentar mentira ou verdade. Todavia, não se pode negar ser um homem de seu tempo: Kendall distorce os fatos, acreditando que basta só ele crer (Shiv caçoa quando Kendall diz ser o mais velho; Roman já havia dito que sem foto não há fato). Roman, então, questiona a continuidade em sua forma mais prosaica ao lembrar que as crianças de Kendall não são filhos biológicos do irmão. Lembrança que abre uma brecha: ao contrário de Logan, Kendall não é luz, sombra ou sangue desses filhos. É nada, uma outra ausência que se abre sobre a nova geração. Diante dessa verdade, ele enfia os dedos nos olhos de Roman. Hamlet tenta cegar Édipo. É seu arroubo final na tentativa de ser rei.
Shiv é quem traz o já bastante comentado desfecho de Rei Lear: Tom (Matthew Macfadyen), o marido que ela nunca amou, herda o reino, tal qual Albany, o genro bajulador da tragédia de Shakespeare. Ao trair os irmãos em favor desse homem que despreza, Shiv faz um sacrifício complexo: numa primeira leitura, ela — constantemente subjugada por ser mulher — compactua com a abertura de um novo patriarcado, com o qual terá maior poder de barganha; além de estar submetido a Mattson (Alexander Skarsgård), Tom é urdido por Shiv entre desejos, recalques e retaliações. Contudo, uma segunda leitura é possível: ao romper o legado de Logan, ela conduz e acompanha as sobras paternas a seus devidos destinos — a morte e purificação do símbolo-pai, o exílio dela e dos irmãos. Nesse sentido, é Goneril (porque se sacrifica, ainda que simbolicamente), mas também Antígona, filha de Édipo, aquela que conduz o pai até a morte, até libertá-lo, cumprindo a promessa que fizera diante do caixão — So, goodbye, my dear, dear world of a father.
A última aparição de Roman é num super close-up expressionista, porque deforma o rosto e compõe um monstro-humano de olhar baixo; ele encara o chão, essa fina crosta que, nas tragédias, não necessariamente nos separa do inferno. Na saída de Shiv, é a mão de Tom que se abre monstruosamente; uma garra sobre esse trono costurado em couro e contra-plongée, como se viesse de “Cosmópolis” (de Cronenberg). Shiv olha pela janela para buscar horizontes (e estômago), ainda que no subterrâneo de seu arranha-céu. Mas está de olhos abertos. Kendall, por fim, senta-se sob o lusco-fusco, diante do oceano; enquanto encara esse manancial de símbolos e sonhos, é filmado de perfil, um meio homem, esquálido, vazio, incapaz de cumprir a “citação” shakespeariana preferida do pai: “take the fucking money”.
É sob a luz do entardecer, sufocado pela trilha incidental e pela agitação da água, de tudo, que esse Hamlet de espuma encerra Succession sob uma tragédia destes tempos, o destino incontornável de ser uma imagem vazia.
Freud tinha razão: cada época tem o Édipo (ou o Hamlet) que lhe cabe. Ser. Ou não ser.
[1] “Freud, Sigmund, 1856-1939
A interpretação dos sonhos [recurso eletrônico] / Sigmund Freud; tradução Walderedo Ismael de Oliveira. – [20. ed.]. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.”
Trecho de: Sigmund Freud. “A interpretação dos sonhos”. Apple Books.