Edição 21

Edição lançada em 07/07/2016

Editorial

A crítica é uma parte que se desprende da alma. Começa, porém, pelo corpo, pelas retinas e tímpanos impregnados pela luz, som e fúria de um filme. A paráfrase a Shakespeare é propícia, já que o cinema é (ou, a priori, deveria ser) essa emulação monstruosa da vida, fantasmagoria que reelabora o mundo diante dos olhos incrédulos e, por isso, cada vez mais abertos à possessão. Pois é disso que se trata: da invasão de um corpo e do duelo de dois espíritos, prontos a se atracarem.

O homem – sua história e repertório – se põe em combate com o filme, essa besta-fera cuja essência se constitui de outras almas e seus suores. Mas o filme tem garras e as crava naquele que esfrega a lâmpada mágica. Gênio-demônio, faz promessas, sopra aos ouvidos, ocupa a cabeça e provoca o olhar. Parte se acopla ao espírito-hospedeiro numa simbiose indissociável; a impetuosidade, entretanto, é tamanha que demanda uma expurgação.

A crítica nasce desse exorcismo, a expulsão traumática de um espírito que nos seduz e nos consome. Nesse rito interno (mas nem por isso menos violento), a besta-fera luta tanto que, quando expulsa, leva consigo os fiapos da alma hospedeira nas garras afiadas, que também se ejetam. A crítica é isso: esse corpo disforme, formado por duas essências sensíveis – a do crítico e a do filme –, que quando se encontram, se entrelaçam e se consomem até o ponto em que precisam se separar para que sobrevivam. Não saem intactas: há uma transferência entre essas almas, e há a cicatriz das garras, lembrança dessa batalha.

Um exercício de vida e de morte.

Nesta edição, Liene Saddi escreve sobre Mãe só há uma, de Anna Muylaert; Bruno Colombo Gatto e Felipe Cruz tocam a questão da memória ao falarem sobre os filmes Alive Inside e Procurando Dory, e Álvaro André Zeini Cruz analise o curta-metragem A Outra Margem, de Nathália Tereza.

Cabeçalho com parte dos créditos de “Bonequinha de Luxo”, de Blake Edwards.

 

Álvaro André Zeini Cruz

editor