por Álvaro André Zeini Cruz

É. A gente quer valer o nosso amor.
“Amor de mãe”. Sob esse título acolhedor, a novela das 9 estreou em novembro de 2019 cercada de expectativas que contrastavam com a simplicidade da logomarca. Escrita por Manuela Dias, propôs logo uma operação narrativa complexa, que disfarçava sob a superfície de um realismo sentimental, uma trama borbulhante e áspera, cujas dicotomias fizeram valer o amor de quem é de telenovela.
Em “Amor de mãe”, as histórias de três mulheres se cruzaram no plot do filho perdido, tipicamente melodramático. Lurdes (Regina Casé) é o nó desse trio. Dos 125 capítulos, ela passou 122 à procura de Domênico. Pensou tê-lo encontrado logo no primeiro terço da trama, mas Sandro (Humberto Carrão) era o filho que Vitória (Taís Araújo) havia vendido na adolescência. No jogo das coincidências características do gênero, Domênico estava ainda mais perto do que essa mãe imaginava: era Danilo (Chay Suede), filho de Thelma (Adriana Esteves), com quem Lurdes nutria uma forte amizade desde o primeiro capítulo. Como se não bastasse, esse filho biológico havia se casado com Camila (Jéssica Ellen), filha adotiva que Lurdes encontrara no trajeto do sertão ao mar. Melodrama trilhado sobre uma utopia bem brasileira.
Mas pouco se vê do mar em “Amor de mãe”; as vidas dessas protagonistas se enroscam num bairro aparentemente central. O novelo que resulta desse trio de cordas é curioso: a nordestina Lurdes se entrelaça à Vitória – mulher negra com escolhas profissionais moralmente duvidosas –, e Thelma, dona de um restaurante português que tenta se desvencilhar das investidas da especulação imobiliária. É Vitória quem, a princípio, representa essa especulação; ela advoga para Álvaro (Irandhir Santos), um empresário com consciência social predatória. Mas a maternidade faz com que essas duas mulheres invertam suas posições durante a trama: preocupada com o exemplo que deixará aos filhos, Vitória rompe com Álvaro e se redime, enquanto Thelma compactua com o empresário, disposta a tudo para esconder a verdadeira identidade de Danilo.
A triangulação entre as protagonistas se rearranja. Enquanto Vitória passa a ser uma aliada para Lurdes na busca por Domênico, Thelma se desloca ao posto de antagonista quando assume a maternidade como única vivência válida, aquela que deve soterrar todas as outras. Mas a maternidade de Thelma demanda a eliminação de outras mulheres-mães. Extrapola o âmbito doméstico próprio e invade as casas ao redor, desejando arruiná-las. Álvaro é o destruidor propício a auxiliá-la, pois seu poder predatório coopta o público em prol do privado, em negociações que envolvem o controle de milícias, a destruição de ecossistemas, a interdição de escolas e tudo aquilo que elas constroem. Álvaro é a força que traz ironia ao fictício bairro do Passeio, fazendo dessa uma vizinhança menos oportuna à circulação e mais adequada ao ficar em casa, desde antes da pandemia.
É o que Thelma deseja: trancafiar-se naquela casa labiríntica com o filho, obcecada por uma noção de maternidade que, além de abdicadora (abdica o trabalho, o amor, o sexo, as relações sociais), é também a única possibilidade de edificação do lar. Ao contrário de Carminha, uma vilã talhada pela sobrevivência, Adriana Esteves (e Manuela Dias) compuseram uma caricatura anacrônica, uma mulher portuguesa que, na pior das hipóteses, planeja retornar à metrópole. Não à toa, ela se submete ao acordo com esse homem que vê os arredores como uma colônia de exploração. Ciente dessa convergência, é justamente a Álvaro que Thelma expõe uma fala reveladora, que diz respeito à nora Camila (a quem ambos tentaram matar):
“Agora, ela vai virar a heroína das heroínas! Uma professora cadeirante, negra, batalhadora, metida a rainha da superação”.
Forte, racista e preconceituosa, a declaração ecoa uma visão de mundo que encontra suporte propício: entre as quatro paredes do escritório da grande corporação, o executivo inescrupuloso compreende o ressentimento de uma mulher que tem sua maternidade confrontada por outras mulheres, a quem ela subjuga.
Em “Amor de mãe”, a articulação dessas mulheres – uma nordestina, uma negra (duas, na verdade, já que Camila também conquistou protagonismo) e essa descendente direta de portugueses – pode ter se dado pelas coincidências melodramáticas, mas que há um Brasil muito bem pensado nesse encontro, isso há.
É. A gente quer é ter muita saúde.
É por haver um Brasil pensado pela perspectiva realista e contemporânea que a novela não poderia dar outra resposta aos questionamentos colocados nesta volta da trama, bem sintetizados na pergunta proposta pelo podcast “Uol vê TV”: “Pandemia em Amor de mãe: precisava?”.
Precisava. Precisava porque além do já mencionado realismo, é papel da ficção (também) reverberar a realidade imediata, uma vez que o estatuto ficcional produz um pacto de identificação que difere, por exemplo, do do jornalismo. Essa reelaboração ficcional reforça vínculos e uma importância social à novela, que ainda é nossa principal narrativa ficcional (e me espanta ver a telenovela, tão criticada pelo escapismo, ser cobrada por mais escapismo). Precisava, sobretudo, porque diferente da relação com o corpo humano, no corpo de “Amor de mãe” a Covid-19 não foi doença, mas sintoma.
O mundo ficcional de “Amor de mãe” já era adoentado, pois desde o começo reelaborou um Brasil adoecido. Se há 9 anos, “Avenida Brasil” ficcionalizava um país que vinha de uma onda de progressos – e que pulsava um senso de comunidade consolidado no bairro (e no time de futebol) do Divino –, “Amor de mãe” se propôs a retratar um país abismal, racista, violento e cada vez mais armado. Nessa conjuntura, é uma novela que retorna para dentro dos muros das casas, entendendo que proteção, afeto e felicidade são valores restritos ao seio familiar. O espaço público, além de não nos servir, pode nos matar.
As ruas sempre foram um perigo nessa novela. A avenida principal do Passeio era cercada pelo peso de um viaduto, que tinha numa ponta o grupo de Kátia (Vera Holtz) e, na outra, a polícia corrupta, encabeçada por Belizário (Tuca Andrada). Foi nesse espaço público claustrofóbico, com trânsito e violência urbana, que Magno (Juliano Cazarré) se deparou logo no primeiro capítulo com o estupro de Verena (Mariah). Também ali, Camila foi atropelada, Marconi (Douglas Silva) e Davi (Vladmir Brichta), baleados, Betina (Isis Valverde), sequestrada.
Foi nesse microcosmo de qualquer grande cidade brasileira que a Covid-19 se alastrou ao longo dos 23 capítulos finais, exibidos justamente no pior momento da pandemia no Brasil. E se antes a trama já arquitetava esse ambiente hostil, agora, com sets esvaziados, “Amor de mãe” muitas vezes pareceu apocalíptica. Houve incômodo por parte público e da imprensa especializada em televisão. Houve também discrepâncias na discussão da pandemia; as gravações ocorreram entre agosto e novembro de 2020, quando eram outras muitas das informações que se tinha sobre a doença. O prejuízo foi sintomático na narrativa: com uma redução de metade dos capítulos, Manuela Dias teve que se concentrar nas grandes engrenagens da trama, eliminando personagens e forçando situações como a ocorrida com Vitória, que, advogando num caso de violência doméstica, se viu obrigada a dar uma “carona” ao abusador, ato impensável para essa mesma personagem na primeira fase.
Quase sempre esse tipo de furo nas cenas preparatórias foi solapado pela emoção das cenas principais. Problema maior foi a diluição de algumas dinâmicas entre personagens que vinham funcionando (Danilo e Durval, Durval e Thelma, Thelma e Jane, Davi e Raul), bem como das cenas pequenas, aquelas que dão corpo à telenovela ao reiterar acontecimentos; cenas que Manuela Dias disfarçava muito bem sob essa casca do cotidiano familiar afetuoso. Nesses 23 capítulos finais, sobraram elipses numa narrativa com ritmo de série coral. Mas novela não é série coral, é série folhetinesca. Nesse recalcular de percurso, a autora derrapou, mas não se esqueceu do folhetim: não faltaram cenas como o catártico reencontro de D. Lurdes e Danilo, abraçados de joelhos no chão de terra com o trilho do trem ao lado, abrindo-se a novos horizontes.
É. A gente quer viver felicidade.
Catarse. É a palavra que, desde Aristóteles, descreve esse tipo de descarga física-emocional-moral entregue pelo capítulo da última terça-feira, 6 de abril. Catarse que, aliás, não se via no horário nobre desde o confronto entre Nina (Débora Falabella) e Carminha (Adriana Esteves), de novo em “Avenida Brasil” (talvez porque a telenovela tenha se entregado às mini-catarses, ou “mini-gozos”, como diz Maria Rita Kehl). Na cena na estrada de terra, cumpria-se o objetivo da protagonista e o realinhamento dos destinos; dali em diante, os capítulos tiveram cara de epílogo, arremates narrativos.
Não foi um final livre de clichês ou ganchos ruins (como o deixado pelo penúltimo capítulo), mas com boas surpresas. Durval ganhou um último “conflito” ao encarnar outra personagem (a Unicórnio Princesa) numa trama leve, que funcionou graças ao tipo divertido e singular criado por Enrique Diaz. Vitória confrontou a mãe biológica de Tiago e retornou a questões do início de sua trama. Foi também uma grata surpresa Manuela Dias a ter incluído numa das melhores cenas do último capítulo: a despedida de Lurdes e Thelma serviu para reunir o trio protagonista e foi Vitória quem alinhavou os destinos da três, recapitulando os desencontros e reencontros dessa história. A despedida de Thelma e Danilo não quebrou expectativas, pois viu-se o esperado: Esteves e Suede entregues aos personagens, ele sem medo de dilatar o melodrama até esgarçá-lo, se preciso; ela incluindo uma composição bastante distinta das anteriores em seu hall de “vilãs”.
Mas a melhor cena foi a última, porque foi a típica cena que abrilhantou “Amor de mãe” e que fez falta nessa reta final: durante um almoço familiar, D. Lurdes usa um esmalte para gravar as iniciais dos filhos nos copos e assim tentar diminuir a louça na pia. É nesse momento “a rotina tem seu encanto” que Danilo a chama de mãe pela primeira vez. D. Lurdes, claro, reage, mas não com uma emoção burocrática: sim, ela chora, mas também vibra, pula, ralha, brinca com os filhos, diz que Domênico é um nome muito mais bonito do que Danilo.
A fotografia familiar, agora quase completa, encerra o capítulo. “Quase” porque a ausência de Sandro não passou despercebida (por mim ou pelas redes sociais). Isso porque mesmo quando desfeito o engano das maternidades, o público continuou enxergando em Lurdes uma espécie de “mãe moral” de Sandro. É certo que a troca cênica entre Regina Casé e Humberto Carrão colaborou para isso, mas é provável que a permanência desse vínculo ultrapasse a própria diegése. Talvez Lurdes tenha personificado um imaginário materno que, não só é brasileiríssimo, como parece ter vindo de um outro Brasil, agora inexistente, demolido e enterrado. Num país cada vez mais doente dentro e fora da tela, ela representou, na ficção, a mãe amorosa para uma nação que, como nunca, precisa de cuidados. Mas que, ao invés disso, está abandonada à própria sorte.
É.