Dona de Mim

por Álvaro André Zeini Cruz

Ontem, Dona de Mim levou ao ar mais um de seus jograis musicais; desta vez, personagens de diferentes núcleos se revezaram entre os versos de Novo Tempo, construindo uma elipse contida em sumário narrativo. Quem acompanha as novelas de Rosane Svartman sabe que a cantoria não só faz parte do pacote — a autora, aliás, deveria propor uma novela abertamente musical, risco que não faria mal a TV Globo (eu, particularmente, gostaria muito) —, como aparece, recorrentemente, como distensionamento otimista de momentos dramáticos: no caso, a descoberta de que Caim, digo, Jacques (Marcelo Novaes) matou o irmão Abel (Tony Ramos).

A premissa é bíblica, mas é também shakespeariana: tal qual Cláudio, Jacques inferniza a vida dos sobrinhos — especialmente Samuel (Juan Paiva) —, assim como se aproxima da viúva, Filipa (Cláudia Abreu). Adiciona-se a esse caldo trágico uma pitada de melodrama infantil a la Pequena Órfã e Chispita, embalando tudo para viagem numa quentinha da Sol (Sheron Menezzes); protagonista da novela anterior, cujo título — Vai na Fé — segue ressoando nesta.

Uma das questões mais batidas na arte — e, consequentemente, na crítica — é a unidade entre forma e conteúdo, decomposição didática que não invalida um fato: são duas faces de uma mesma moeda, já que a forma é a superfície por onde se chega ao discurso, que, por sua vez, nos arremessa de volta à forma. Assim, é responsabilidade da forma ser justa ao conteúdo e vice-versa, conjugando uma comunhão entre ética e estética. É, justamente, isso que me parece problemático em Dona de Mim, trama sombria, excessivamente — e, por isso, indevidamente — fantasiada de solar.

A desculpa mais elementar para isso está na grade: é uma novela das 7, de onde se espera tramas docemente arejadas entre o romance e o humor. Nesse sentido, a cor saturada e aquecida, as texturas e estampas acolhedoras, e a segurança do multi-câmera tecem um estilo inegavelmente apropriado ao que se imagina ao horário. Mas e a trama, o tecido profundo, como dialoga com essa capa da forma? Dialoga pouco; às vezes, dialoga mal. Porque, apesar do melodrama infantil supostamente gracioso, Dona de Mim se estrutura, de fato, nas tragédias: das mitológicas (o ódio entre irmãos de sangue) às contemporâneas (Alzheimer; corrupção policial e violência urbana; violência contra a mulher). Não são circunstâncias melodramáticas porque, no melodrama, tudo se reajusta em prol da vida que segue, enquanto, nas tragédias, algo de bom morre, literal ou simbolicamente, dentro dos heróis; algo que não pode ser restituído.

Há pequenas mortes tanto no Alzheimer de Rosa (Suely Franco), quanto na violência sexual sofrida por Kami (Giovanna Lancelotti). São personagens sobreviventes, mas que carregam consigo dados trágicos, inapagáveis, inescapáveis. No entanto, estão nessa novela das 7, ousada por tocar em temas incomuns ao horário, mas inadequada nessa visualidade otimista incessante — consolidada pela direção de Alan Fiterman —, como se a forma respondesse ao texto “um novo tempo, apesar dos perigos”. Sim, a forma pode se codificar como um contraste racional e explícito ao conteúdo, estabelecendo o que Laurent Jullier e Michel Marie chamam de um “discurso” duplo pela complexidade ao invés da redundância. Não é o caso em Dona de Mim: a plasticidade das imagens não cria ruído irônico ou distanciamento crítico, pelo contrário; é feita para acomodar as peripécias trágicas no mundo comum e confortável da comédia.

Muitos desses equívocos são da própria Globo: primeiro por não escalar Svartman para o horário das 9, que seria mais apropriado a seus temas. Depois, por estender a novela, obrigando uma autora aparentemente inquieta a evitar o andar em círculos. Estudiosa dos códigos da telenovela (autora de uma tese com um olhar atento, coerente e contemporâneo a esse objeto de estudo), Svartman desenrola as plots em helicoidais, que, a um só tempo, reiteram e aprofundam os dramas. Essa volta do parafuso traz dinamismo narrativo, mas o tiro também sai pela culatra, atravessando diretamente a carne dos personagens com sofrimentos que soam inapropriados à casca alegre e resplandecente. É nesse sentido que Rosa (Suely Franco, numa das grandes interpretações televisivas deste ano) nos desperta os sentimentos aristotélicos da pena e da afeição, mas também nos expõe a uma exaustão emocional, uma vez que seus lapsos de memória progridem em consonância às maldades de Jacques, o filho que se aproveita da doença da mãe para usurpar o trono (tudo isso numa mansão publicitária, à beira da piscina, sob iluminação difusa). Filipa é outra que anda pela beira do abismo e só sobrevive porque foi entregue a Cláudia Abreu.

A personagem traz, de maneira pouco vista, o transtorno bipolar, condição de saúde mental que alterna a euforia e a depressão. Essa maleabilidade entre extremos, por si só, já traria complexidade a Filipa, que, no entanto, encarna ainda Gertrudes, envolvendo-se com o algoz do próprio marido. A questão é que nesse movimento helicoidal, Filipa não só é enganada, como se deixa enganar reiteradamente: testa a paciência do público com uma ingenuidade excessiva, incabível aos fatos de sua jornada, quase imperdoável a uma mocinha contemporânea. Só se salva porque está nas mãos de uma atriz que é capaz de sustentá-la, apesar das armadilhas do texto alongado.

Guardadas as devidas proporções, Dona de Mim recai — de maneira menos grave — num erro parecido ao da série Thirteen Reason Why, da Netflix; essa, sim, absolutamente abjeta e condenável. É verdade que a série trazia um suicídio como incidente incitante, mas o tema pesado surgia (pelo menos, a princípio) embalado numa estilística poética/irônica, algo entre “As Vantagens de ser invisível” e “Desperate Housewives”. A surpresa do público é que, sem nuance ou sobreaviso, os episódios deixaram de parecer uma versão americanizada de Malhação para mergulharem num filme de Michael Haneke ou Lars Von Trier. Pior: a narrativa fazia com que a personagem tomasse todas as piores decisões possíveis antes do suicídio, induzindo o público a duvidar de sua inteligência e, mais grave, insinuando uma culpabilização, uma descrença à posição de vítima. Filipa quase caiu nesse desfiladeiro, mas Cláudia se equilibrou nos escorregões do texto, assim como Clara Moneke, que aparenta personalidade a uma protagonista que é dona de si, mas quase sempre de forma reativa, impondo-se depois que uma situação se coloca. Sua Leona é outra personagem marcada (pela perda gestacional), que mascara essa tragédia tão própria ocupando-se do cuidado com o outro, quase nunca consigo. Apesar da formação publicitária e da vida amorosa agitada (outro sintoma do alongamento da trama), Leo parece sempre pronta a virar a tia Carolina e fundar a filial carioca do orfanato Raio de Luz.

A referência não é aleatória: como disse num comentário pontual, Dona de Mim é uma tragédia shakespeariana embalada como Chiquititas; digna de uma montagem sincronizada com “mexe, mexe, mexe com as mãos”, a vinheta é a maior prova disso. O leitor pode estar se perguntando: mas é impossível misturar essas coisas? Não, não é, mas é preciso cuidar para que as relações entre forma e conteúdo sejam orgânicas, criando gradações justas. Para continuar na pegada do universo infantil (o que considero o ponto alto de Dona de Mim), é preciso misturar melhor os sabores, colocar um feijãozinho mágico sabor vômito entre o doce do morango e o azedo do limão. A depender do capítulo, ver Dona de Mim é como pegar uma caixa de sucrilhos e, sem se dar conta, morder um jiló. “A vida é amarga, mas, olhe ao redor: um novo tempo!”, canta a novela, resplandecendo cor e calmaria, sem prover uma sombra para os personagens chorarem de vez em quando.

A depender do capítulo, penso: talvez um Pantoprazol caia bem. Talvez uma Sertralina.