por Álvaro André Zeini Cruz

Tião Galinha. Tião Sonhador. Tião Pregador. Tião. Pobre diabo; o nome não basta, abre brecha a esses acréscimos com valores depreciativos na boca dos outros. Até porque, sobrenome não há. Se há, não é digno de menção, ao menos não como aquele que reverbera e rege a trama. Inocêncio. Inocentes desde a certidão de nascimento, até que se prove o contrário. Mas quem se arrisca a provar algo contra o contador de todos os causos? Quem se atreve a duvidar da inculpabilidade do sujeito do facão fincado, do herói nacional equilibrado entre a aventura e o enraizamento, aquele que abre a mata densa da história em trilhas narrativas, por onde urbanoides e retirantes afluem sentido ao Jequitibá-Rei? O mais inocente dos Josés reina nesses confins da fruta que tem cor de sol e do sol que arde sobre a pele dos caroços e de diabos como Tião.
Inocêncio é de carne e osso, mas seu corpo, até aqui, esteve fechado por uma série de pactos sincréticos. Da matéria à alma, é intocável porque renasce como um pequeno Deus preso na garrafa de homem. Em outra botelha (de vidro), carrega dois diabos — o cramulhãozinho que lhe sopra os ouvidos, e Tião, o pobre que pôs o coração e as ideias dentro da garrafa. Homens nascidos das raízes mais opostas desta árvore de realismo-fantástico, cujas folhas se agitam entre ventos naturais e sobrenaturais. Deus, diabos e sóis pendurados entre céus e galhos dessa Bahia (estilísticamente) pouco glauberiana, criada pela única Hollywood brasileira.
Mas um dos diabos parte, sem que nem Deus, nem o outro diabo o tenham esconjurado. É Joana quem o desafia quando vê algo que não vemos (o diabo mora nos detalhes mais incógnitos): ela testa a resistência do vidro contra a própria cabeça, repetindo o desafio dos homens (olhos nos olhos pela proteção do vidro); então, repete o gesto de Mariana, só que sem a contingência da casa, templo quase divino que, de bom grado, acolhia até o tinhoso. Joana destampa a garrafa. Desta vez, Deus acorda. Tião, também. Um na cama, outro, nessa cela avessa à caverna de Platão, pois projeta as sombras ao homem outrora aprisionado sob o sol. Um escapulindo como pode do destino; outro, fadado ao destino que lhe couberam, ao sistema de retroalimentação exponencial das marginalizações e banimentos. Tião é diabo sartriano: o inferno são os outros. Inclusive os deuses. Sobretudo, os deuses.
Aqui, o desafio com diabo é sob o luar, e quem o faz, duela indiretamente com o Deus que o tem. É Joana — feminino de João, nome-filho enjeitado — quem desafia José, duvidando-o desde a palavra: “Que trato é esse que só o pobre tem que pagar? Que proteção, que corpo fechado é esse que só protege coronel?”, diz, antes de estilhaçar o vidro no chão para, em seguida, rodopiar com o facão em punho. Nesse giro, Joana reencarna o Damião de 1993 em seu duelo com a metrópole; reencarna Dinorah, personagem de Cangaço Novo com quem compartilha o corpo; reencarna todas as representações, hipóteses e imaginários de Maria Bonita. Não à toa, algumas cenas antes, ela convoca o bando no centro da roda, no lugar de Tião, que só não definha, como em 1993, porque é salvo por Joana, porque na rearticulação das peças narrativas, a garrafa se quebra aqui, no limiar da morte.

Item de tangenciamento entre polos, o cramulhão é desmascarado por Joana, exposto como badulaque de uma fé injusta, que cria lenda ao herói inocente de nascença, ao passo que consome o pobre em culpas e ressentimentos. Liberto, o diabo sombra e assombra Tião, mas surge como labareda à mulher que corta a corda desse cabo de guerra entre o topo e a base. O sopro do tinhoso esvoaça os cabeços de Joana e revela o olhar marcante de Alice Carvalho, emprestado a essa mulher costumeiramente moderada e ponderada, mas que se rebela contra o sobrenatural e o antinatural (as desigualdades). Por isso mesmo, a arma em riste não titubeia; horas após esse duelo, Joana a fincará no chão, tal qual fizeram Tião e Inocêncio. O ato-pacto feito como resistência (para não ser expulsa por Damião) antecede a renascença de Tião. Quando Joana o encontra na cela, o corpo não é como o de um Tião-Cristo pendurado (como era o de Osmar Prado); está no chão, com a camada de cimento impedindo-o de morrer sobre a terra (nem mesmo morto a tem). Mas Tião renasce, ou melhor, Joana o ressuscita pelo poder dos nomes dos filhos (aqueles que o pobre diabo prometera ao demônio). Quando Tião abre os olhos, ela o acolhe no colo, se desvencilhando da forca, da cruz, para reencenar a representação seguinte, a Pietà com esse “homem-como-Cristo” ressuscitado. Joana também tem sua “transmutação” — naquele instante, é mulher, esposa, mãe e santa sobrevivente nesse mundo de virilidades arcaicas. Força insólita que obriga o diabo a pagar a promessa.
Longe dessa delegacia torta — literalmente, como se esse espaço ímpar do poder público não tivesse a sustentação dos lugares privados (vide a cena com Tião, Bento e Kika) —, o coronel pressente a morte do demoninho (que, ironicamente, será bicado pelas galinhas). A sombra dos cornos se desfaz na parede da cela, mas, entre os cacaueiros, chifres concretos, coloridos, reaparecem a José Inocêncio. A aparição do Boi lembra que o pacto de renascer está pelo último fio (da faca); ao que tudo indica, desta vez a morte só se apresentará a um desses homens-antíteses, que, até aqui, só o que tinham em comum era o diabo. Agora, convergem pelas mãos de Joana, a mulher que encarou um diabo para salvar outro, e que, nesse ínterim, engarrafou Deus em Adão, em homem com sangue que escorre, ciente da tragédia incontornável da finitude; isto é, pobre coitado, como qualquer um de nós. Nessa batalha entre Deus e o pobre diabo, aquele melhor representado sobrepõe e fagocita o outro. José, Tião e o cramulhão duelam nessa terra sem sol pelas mãos de Joana, tornada a mais insurgente das mulheres, aquela que não suporta mais pactos e conciliações, que abre a garrafa não com a curiosidade de Pandora, mas com a certeza de que quer inverter o céu, o inferno e o que houver de errado no meio (quase tudo).
Quem sobreviverá a tudo isso? Se depender de Joana, ao menos na ficção, o (pobre) diabo, provavelmente.