por Álvaro André Zeini Cruz

Há dois planos próximos ilustrativos do jogo de Luca Guadagnino em Depois da caçada. No primeiro, Hank (Andrew Garfield) surpreende Alma (Julia Roberts) durante uma palestra intitulada “O Futuro do jihadismo é feminino”, proferida pelo cientista político (homem e europeu) Hugo Micheron; a ironia superficial é até discreta se comparada a um todo onde conflitos de gênero são deflagrados e dialogados explicitamente, mas há também, nesse subtexto momentâneo, a vinculação do feminino a uma manutenção conflituosa, algo que reverbera na personagem de Roberts. Mas voltemos ao plano, essa extensão de espaço e tempo que, neste caso, começa contendo Alma, enquadrada num primeiríssimo plano. Ela, no entanto, não está no centro do quadro, mas no canto direito, perdendo ainda mais espaço quando a intrusão de Hank se efetiva: invadindo a composição pela esquerda e mais alto do que ela, o sujeito atravessa o quadro, impondo-se do peito ao nariz e escanteando/objetificando Alma, cuja opressão se explicita pela dupla descomposição — seja pelo quadro, seja pelo olhar incomodado. A essa altura, dúvidas e ameaças já borbulham entre essa dupla de professores universitários (e casal de amantes), introjetadas pela acusação de abuso sexual que Maggie (Ayo Edebiri), uma aluna dos dois, faz contra Hank. É Maggie quem surge em seguida, alterando a dinâmica da mise en scène.
Pois se Hank, em pelo menos dois momentos, engessa o quadro, delimitando as entradas e saídas de Alma, o jogo entre Alma e Maggie — e Roberts e Edebiri — remete ao filme anterior de Guadagnino. Quando, no mesmo espaço, os rostos se contrapõem, a câmera não mais os enquadra como se houvesse ali a coexistência entre predador e algoz, mas se alterna entre as duas mulheres em panorâmicas rápidas, como num jogo de tênis cuja maleabilidade do olhar se impõe diante de uma natureza movediça. Assim, a mise en scène de Guadanino engana ao propor uma equidistância inexistente entre a professora branca e a aluna negra, a acadêmica que usufrui de pequenos poderes e a jovem herdeira carente de aprovações. Ah, sim, a classe social entra no jogo.
O filme de Guadagnino aborda temas contemporâneos espinhosos, costurando questões raciais e de gênero até chegar ao que me parece ser um contexto maior: o impasse entre tempos, o ruidoso conflito geracional numa contemporaneidade que só dá ouvidos aos ruídos. Nesse sentido, é um filme que me parece viver um descompasso interno, já que essa mise en scène de margens e movimentos desestabilizadores, e de planos detalhes que ora afagam, ora violentam, é mais convidativa à dúvida e ao debate do que o roteiro didaticamente filosófico, a ponto de parecer desconfiar da inteligência do público. A referência ao Woody Allen é bem-sucedida até certo ponto, já que os dramas de Allen são mais econômicos, diretos e lacunares, ao menos até culminarem em alguma ação explosiva. Nesta Caçada, a sensação é de que o cozimento volta ao fogo mínimo das explicações dispensáveis sempre que a erupção parece inevitável. É o curioso caso de um acovardado filme corajoso, que vive ainda uma outra singularidade: se, por um lado, a inspiração em Woody Allen é insuficiente, por outro, acaba por garantir alguma personalidade mesmo que pelo pastiche, algo que já havia acontecido no ótimo Me chame pelo seu nome (que tinha algo de Rohmer) e no bom Suspiria (que, convencido de que não alcançaria Argento, desviou-se dele até o último ato). Acaba resultando num jogo mais interessante do que o anterior — o superestimado Challengers, ápice do erotismo para quem deve praticar a castidade —, talvez porque a quadra seja mais complexa (o reduto de egos, poderes e toxicidade do meio acadêmico), talvez porque Julia Roberts e Ayo Edebiri sejam craques com muita vontade de jogar (Edebiri, aliás, teria dirigido esse roteiro melhor). Para efeito de comparação, deu até vontade de voltar à antítese professoral feita por Roberts há mais de duas décadas, no inofensivo O Sorriso de Monalisa.