por Álvaro André Zeini Cruz

Antes de ir aos filmes, considero ético constar que Wellington Sari, diretor de Bia mais um, é um amigo dos tempos de faculdade e de trabalhos anteriores; assim como Priscyla Bettim e Renato Coelho, de Cidade dos abismos, foram meus colegas na pós-graduação. Priscyla é também colega de corpo docente; Renato foi um dos primeiros colaboradores desta Pós-créditos.
Numa cena de Bia mais um (cuja didática poderá ser útil a qualquer professor que aborde o assunto), Bia explica ao namorado o que é maneirismo e fala da impressão em comum que pintores (e cineastas) maneiristas tinham de terem chegado tardiamente a sua arte. Para quem conhece a pesquisa de Wellington, é natural que o maneirismo apareça na boca dos personagens. Mas ele preexiste na forma do filme e, antes disso, perpassava pelos curtas. Isso porque Wellington e a produtora O Quadro são obcecados pela adolescência como temática, e, até então, essa abordagem de uma determinada adolescência (curitibana, de classe-média) parecia se apropriar – para, depois, torcer e retorcer – as referências de John Hughes e Éric Rohmer. Pois Bia mais um dá outra volta no parafuso e é nessa volta que Hughes fica para trás. Rohmer também, em partes. Aqui, a juventude permanece brisa, lufada de ar, só que não mais livre e incontrolável entre praias (como em Monique ao sol) e parques (como em Manu Baunilha, Bia Chocolate), uma vez que sopra contra uma atmosfera densa, uma espécie de evaporação abrupta da adolescência (ocorrida entre faculdades e responsabilidades). Esse turvamento paira pela fotografia difusa, que lava parte das imagens como se as embebesse em líquido-amniótico (anunciação do por vir) e circula entre as margens dos quadros rigorosos. Estes, como nunca, se desdobram em direção às profundezas dos planos, ao mesmo tempo em que são plastificados pela cor, que cai pontualmente sobre o filme como uma espécie de celofane. Se a referência a De Palma é óbvia (porque é explícita), Bia vai a outros lugares: esbarra em espaços etéreos que remetem a Kiyoshi Kurosawa, na geometria de Won Kar-Wai, na cor de O Fundo do coração, o mais maneirista dos Coppolas. Mesmo o momento mais rohmeriano, quando a situação e a composição lembram O Raio verde (e a conversa cita uma luz misteriosa no extracampo) se desdobra num sonho intrincado, que demarca a continuidade labiríntica que este longa estabelece a partir dos curtas; continuidade que, paradoxalmente, é ruptura. Em Bia mais um, o vento corre por dutos de ar, uma serpentinata que retêm a adolescência e enclausura o sopro. A vida do jovem adulto é ar encanado e enquadrado.
Já em A Cidade dos abismos, a cor não é camada que cobre, mas um elemento que parece emergir dos poros da película, num vermelho e negro (principalmente) que se espalha como magma, irregular e lentamente. Assim, o abismo temático – a morte sempre à espreita dos que mais morrem (negros, LBTQIA+, refugiados, pobres) – se desdobra formalmente no jogo de chiaroscuro, que tem seu ápice no bar Xangô, uma espécie de “Pastelaria Espiritual” às avessas, filmada sob um caligarismo fotográfico. Mas se no filme de Carlos Reichenbach a pastelaria era um espaço ímpar de celebração da vida e de seus encontros (não à toa, abrigava o lançamento de uma biografia), aqui é lugar para os que bebem a si mesmos como mortos que serão adiante. Por isso mesmo, quando as protagonistas brindam e uma delas fala “ia para sua bunda, agora vai para sua cabeça”, a outra responde “vai pras nossas almas”. O assassinato cometido na véspera de Natal – celebração cristã de um nascimento, mas não de todos – transforma os personagens em fantasmagorias urbanas, um quarteto à espera da morte (o trio principal e a Cinemateca brasileira, que surge justamente após o anúncio do crime). Uma reação chega a ser esboçada, mas não há justiça possível num mundo em que uma classe média esvaziada (espacialmente, inclusive) janta sob a falsa proteção da luz fria da TV, em que os abismos engolem os contornos coletivos (os prédios), permitindo apenas os individuais (as janelas). A justiça, aqui, pertence não à matéria, mas ao espírito, ao mundo de Xangô. À passagem, ao Limite.
Entre Bias e Abismos, uma passada por Capitu, que, com um risco, tenta conter o abismo próprio de cada corpo: com um giz, ela contorna a sombra de Bentinho, um decalque do decalque, que, portanto, é outra coisa. Até porque, na tentativa de enquadrar, o traço em giz talvez seja dos mais porosos. Mas fiquemos por aqui, porque este é um texto sobre filmes de conhecidos (olhares, nem tanto), e Bressane é (ou me é) um estranho.