por Álvaro André Zeini Cruz

Em Honkytonk Man (1982), um cantor tuberculoso – interpretado por Clint Eastwood – e seu sobrinho (Kyle Eastwood, filho de Clint) atravessam o país para um teste musical, mas a doença se alastra tal qual a estrada, lugar de redenção nos filmes do diretor. Essa jornada pelos Estados Unidos interiorano também está na obra-prima de Eastwood, Um Mundo perfeito (1992), mais uma vez protagonizada por um homem – o bandido com coração, vivido por Kevin Costner – e um garoto que viaja fantasiado de Gasparzinho. Em ambos os filmes há a reconstituição da infância como aventura preparatória para a desventura principal: o ser adulto, que, sabemos, culmina num destino comum e inescapável. No caso desses protagonistas, são homens relativamente jovens a quem a morte se impõe como resultado de bifurcações adversas. Contudo, ainda que a vida pregressa colaborasse para que partissem solitários, a jornada lhes dá condutores para a travessia derradeira; figuras que estão na ponta oposta, no início na vida, mas que não titubeiam em agarrar-lhes as mãos ao reconhecerem a singularidade desses instantes. É pela irrupção de rigorosos planos detalhes que Eastwood filma o momento em que esses pequenos homens estendem as mãozinhas aos grandalhões, conduzindo esses sujeitos, indefesos como crianças, ao duelo final.
O encontro das mãos está também em Cry Macho (2021). Na cena, Miko (Eastwood) e o garoto protegido da vez, Rafa (Eduardo Minett), almoçam com a família de Marta (Natalia Traven), num salloon readaptado à restaurante de beira de estrada. Na mesa, uma das netas de Marta desenha, mas se distrai com algo que se apoia sobre o tampo, a ponto de dispensar o lápis. É a mão esquerda de Eastwood, que próxima à margem inferior do quadro, está longe de estar em evidência, mas chama tanto este olhar diegético quanto o nosso porque é um detalhe pungente, um punctum, como diria Barthes. A fragilidade da pele fina e das rugas sombreadas pela composição contrastam à potência da memória da mão do cowboy, a mesma que, num passado não tão distante, tivera como prótese a espingarda de Gran Torino (herdeira de tantas outras). Não é Rafa, o garoto, que toca essa mão, mas a menininha do desenho, protagonizando um gesto de ternura, mas também um duelo em que a imaginação infantil, com seus lápis e cores, desafia a dureza dos vincos e marcas deste corpo emprestado a policiais, bandidos e cavaleiros.
O plano detalhe até aparece, mas logo evapora com a correção de câmera. Mais importante está a articulação dos vários olhares em torno desse gesto das mãos sobrepostas; um mundo todo pela frente (um outro mundo; o mundo perfeito?) repousado sobre a consciência materializada – e marcada – de que a experiência do mundo é finita. Quando a jornada é concluída e Miko entrega Rafa ao pai, paira a dúvida se esse é o melhor destino ao garoto. Porém, aqui o cowboy não faz as vezes de justiceiro; talvez porque seu papel de salvaguarda estivesse justamente nessa condução à travessia da fronteira, talvez porque seja preciso dar o benefício da dúvida, não ao pai, mas a esse garoto que transita da aventura preparatória à principal. Ou talvez ainda porque espera que as estradas possam se bifurcar em caminhos menos adversos, tal qual o que o leva de volta a Marta logo após um aceno trêmulo na despedida. Essas mãos que vacilam no adeus, mas que ainda são firmes ao volante ou segurando rédeas, encerraram A Mula plantando flores; em Cry Macho, terminam num bailado sob o contraluz. No último plano, a placa do restaurante anuncia “fechado”, mas, lá dentro, as mãos se movimentam com graça, suavizando o rosto conhecido pelos olhos duros, apertados, adaptado aos horizontes. Face, mãos, corpo de um nonagenário que confrontou o mundo, mas que, mais do que nunca, se deixa confrontar, assumindo as dúvidas e marcas sem perder a firmeza com que posiciona sua câmera.