Crimes do futuro

por Álvaro André Zeini Cruz

O bispo propõe uma barganha: permite que a prisioneira vá à missa caso esta pare de se vestir como homem. Mas Joana rejeita a proposta, e a ritualização de sua tortura começa com a chacota de adorná-la como Cristo. Surge, então, um dos close-ups mais conhecidos de A Paixão de Joana D’Arc, de Theodor Carl Dreyer: levemente tombado para o lado, o rosto da atriz Renée Jeanne Falconetti aponta para o alto (ao céu? aos inquisidores?), numa expressão de suplício sem súplica, consciente do abandono que culminará em sua morte. Quando o plano detalhe recorta o peso do olhar de Falconetti, uma lágrima escorre. No contracampo, um dos algozes diz: “até parece uma filha de Deus”. Deus que, na Bíblia, moldou o homem à sua imagem e semelhança. Para o inquisidor, Joana até parece humana.

Corta para:

Num futuro em que indivíduos sofrem mutações, constituindo órgãos que contrariam o que se conhece da anatomia humana, Saul Tenser (Viggo Mortensen) extirpa esses “apêndices” em exibições públicas. Ele e sua companheira Caprice (Léa Seydoux) consideram suas intervenções como artísticas e não há quem desmonte essa reputação; na verdade, poucos questionam o valor estético destas apresentações, que configurariam uma arte, a priori, radical – a performance. Talvez a ausência crítica se dê justamente porque a performance é, aqui, institucionalizada como única e última arte possível, uma existência moribunda, pois só o que restou de matéria propícia à forma é a própria carne do corpo. Quando todo o resto é esqueleto (o aparelho de autópsia, a cama-placenta seca que anuncia que neste mundo nada mais nascerá) ou entulho, há que se fascinar pelo que há.

Assim, o esforço de Saul é manter-se homem – carne à imagem e semelhança de Deus – por intermédio da arte. Mas quando a pele das crenças (sempre mortas) é cortada (numa autópsia), as dúvidas emergem como orelhas que brotam onde não deviam. Estaria a arte na mera intenção do fazer artístico ou no ato de dar forma à anarquia (mesmo que de natureza implacável), como crê Caprice? Seria a arte a superação da natureza (como dizia Hegel) ou o contrário, a realização humana que se atreve mirar o divino sem jamais alcançá-lo, como defendia Kant? Seria Saul um artista que, incapaz de criar o sublime (criado por Deus), resigna-se à beleza paliativa a partir de espetáculos grotescos (que parecem experienciados por gostos estéreis, docilizados)? Ou seria ele uma criatura supra-humana, capaz de sobreviver aos escombros e criar carne a partir de si, possibilitando a recriação do mundo? Seria ele Deus?

Na cena final de Crimes do futuro, Saul mastiga uma uma barra de plástico, ingestão que promete revelar sua natureza, humana ou não. Surge o plano derradeiro, o único em Preto & Branco: num close-up digno de Dryer, Viggo Mortensen inclina a cabeça e, como Falconetti, olha para o alto. Fecha os olhos e, como Joana D’Arc, derruba uma única lágrima. Então, os olhos reabrem e marcam a diferença definitiva entre as cenas de Dreyer e Cronenberg: desta vez, não são olhos vazios, abandonados nesta terra de ninguém, mas os primeiros a refletirem um lampejo, o encantamento com uma descoberta que não se sabe o que é, nem se está no universo acima ou dentro do corpo. Olhos arrebatados por uma epifania que permanecerá incógnita, pois o corte final vem justo ao movimento da boca, que espasma um sorriso e um tremor, misto de fascínio e assombro que também não se sabe se trará vida ou morte. A única certeza é que diante da câmera diegética de Caprice (que estabelece esse plano final), Saul até parece um filho de Deus. Para Cronenberg, até parece humano.