por Álvaro André Zeini Cruz

Ainda que os musicais possam escamotear tragédias e horrores sob a alegria iluminada das superfícies polidas na era de ouro hollywoodiana — como bem observa Timothy Corrigan em sua análise magistral e à altura de Meet me in St. Louis —, é esperado que o público estranhe a combinação entre um gênero démodé e um vilão de quadrinhos cinematograficamente celebrado nas últimas décadas. Esperado, mas não compreensível, pois essa infiltração musical é a melhor coisa que poderia acontecer ao Coringa de Joaquin Phoenix e Todd Phillips.
Delírio a dois tem o cuidado de pactuar logo o novo velho gênero: inabitual em universos de super-heróis, a brecha musical aparece nas aulas de música que Arthur Fleck (Phoenix) passa a frequentar no presídio, recompensado pelo bom comportamento. É lá que ele conhece Lee Quinzel, a Arlequina interpretada por Lady Gaga, de Nasce uma Estrela. A lembrança do remake de Bradley Cooper não é gratuita; a própria escalação de Gaga parece evocar seu trabalho anterior: outrora estrela-título, nascida entre pequenas tragédias cotidianas, ela, agora, tenta reavivar uma estrela minguante — e que nunca deveria ter sido.
Afinal, é sob esse status que Fleck/Coringa termina o filme anterior; com a violência midiatizada decodificada não como barbárie e horror, mas como última possibilidade humana em um mundo desumanamente corrompido. Uma tragédia, mas que conduzia trama e protagonista a uma “hora de estrela” apoteótica, tornando o personagem abjeto em objeto de deleite e catarse. Desta vez, o carcereiro sádico, vivido por Brendan Gleeson, faz a pergunta que denuncia a mudança de chave — “você ainda acha que é uma estrela?”. Fleck não acha; a rotina carcerária faz da labareda um fiapo de fogo, mas Quinzel surge para atiçá-lo, ainda que as coisas não corram como ela espera.
Isso porque o desejo de Quinzel é de se sujeitar aos olhares; é ser, sobretudo, uma persona conscientemente constituída como extensão dessa primordial e antissocial, o Coringa; não é à toa que a Arlequina vai se compondo como alegoria progressivamente. Abre-se um paradoxo inconciliável: Arlequina se monta como se se preparasse para o filme anterior, de cunho predominantemente social, mas o que se tem neste é um deslizar psicológico, gradual e suave. É a música a situação/instrumento que Quinzel usa para (re)encontrar o Coringa, mas a proposição do gênero causa uma ruptura entre ação externa (a prisão, o júri) e interna (a maioria dos números musicais).
Abre-se, então, esse filme interno, que passeia por certa iconografia dos musicais dos anos 1930 e 1940 a partir da subjetividade de um Coringa que canta (e imagina) outro mundo, de Sinatra, Wonder e Armstrong. Entre tantas bifurcações, Flecker/Phoenix dança no sentido oposto, arriscando-se num salto que entrelaça ator e personagem num só corpo, posto a encarar a epifania desse sublime intruso, do entendimento do musical “como candidato primeiro ao cinema puro”, como sintetiza Adrian Martin. Assim, o mesmo corpo que sapateia com a elegância de Fred Astaire e Gene Kelly, aparece deformado pela magreza (a escápula saliente conduz a câmera numa das primeiras cenas); a presença que desliza com graça For Once in my life é a mesma que se curva a ponto de quase se partir ao meio, tal qual o filme.
Introduzida por Quinzel como algo externo (ou a se externar, pois esse é o modus operandi da personagem), a música leva o Coringa a mergulhar em si, reconduzindo a narrativa de antes a lugares mais interessantes e menos perigosos. A priorização do psicológico encobre o caráter pretensamente social do filme anterior, que cometia erros parecidos àqueles que fizeram o Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, ser decodificado não como a figura trágica e medíocre, mas como herói. Além disso, é graças ao musical que o personagem tem delírios dilatados que suspendem a violência, ainda que ela reapareça, porque lhe é inescapável. Nesse sentido, o desfecho de To love somebody (um dos números mais resplandecentes) é o presságio mais evidente do destino do casal, mas há outro: a cena de sexo na cela, que remete imediatamente à outra feita por Phoenix em Amantes, de James Gray.
Em Gray, o sexo era deserotizado porque não havia ali um encontro real, e sim um jogo de fetiches, inseguranças e conveniências, algo que, de certa forma, se repete aqui. O descompasso entre os personagens é a peça do dominó que desencadeia a reiterada decepção do público (que atingiu em cheio a bilheteria): enquanto Arlequina delira para fora, a partir das imagens (quase desejando um filme para si), Coringa delira para dentro, perdendo-se em seus labirintos. É por isso mesmo que todas as suas possibilidades de fuga são rapidamente frustradas, levando-o logo de volta à prisão. Atento ao perigo do discurso delirante do primeiro filme, Delírio a dois orquestra um movimento gradativo, em que o protagonista dança entre seus salões permitindo-se deslumbrar-se, na impossibilidade de achar uma saída. (Antes tarde do que nunca) entende que não cabe ao Coringa ser intermediador de qualquer descarga fisiológica, psicológica, emocional ou moral; a catarse não existe em Delírio a dois porque, no fundo, esta não é uma sequência — é o epílogo de uma beleza farsante (o rosto maquiado) que descobre notas de real beleza durante a descida ao inferno que lhe é inescapável. É a principal diferença entre Arthur Fleck de Leonard Kraditor, personagem de Phoenix no filme de Gray: no pequeno reino melodramático de Amantes, sobrevive-se, entre paliativos, às pequenas tragédias de todos os dias. Assim, os amantes afinavam-se, ainda que momentaneamente, para atravessarem os desencantos. Aqui, o dueto logo entra em descompasso: o que Quinzel ama é a projeção, a sombra que escapole no desenho animado que abre o filme, mas Fletcher, embora tente, não consegue mais dançar com essa sombra diante do mundo; quer sapatear para dentro, nesses dias finais em que vislumbra alguma beleza/leveza num mundo e na alma.
A síntese desse musical descompassado não está no som, mas na imagem, no beijo dado em meio à batalha entre a luz do projetor e as chamas, entre os fachos que consolidam controladamente a imagem e a dança da luminância caótica que constrói e corrói os infernos.