Por Daniel Figueira Alves
“Últimas conversas” (2015) foi o derradeiro projeto do cineasta Eduardo Coutinho, morto em 2014. Assim como em Santo Forte (1999), Edifício Master (2002) e O fim e o princípio (2005), o diretor utiliza-se de seu conhecido dispositivo de filmagem que dá suporte para a realização do seu “cinema da conversação”. Neste que foi seu último documentário filmado, Eduardo Coutinho escolheu o universo das escolas públicas do Rio de Janeiro para encontrar os personagens do seu filme, estudantes secundaristas que conversam sobre temas variados da vida, como religião, futuro, conflitos familiares, bullying, gostos musicais e discriminação. O filme foi gravado em um estúdio, no qual foi reproduzida uma sala de aula de escola pública do Rio de Janeiro.
Uma preocupação constante de Eduardo Coutinho em seus filmes é a relação de confiança estabelecida com os personagens. Para ele, existem dois momentos em que o diretor deve corresponder a essa confiabilidade. O primeiro ocorre durante a captação ou logo após ela, já que, para o cineasta, o “pecado original do documentário é roubar a imagem alheia”. Assim, como uma forma de compensar esse “pecado”, o diretor mostra durante ou depois da filmagem, o produto final, ou em andamento para seus personagens. O segundo momento se dá durante a montagem do filme, já que para Coutinho toda montagem “supõe uma narrativa, e todo filme sendo uma narrativa pressupõe um elemento forte de ficção”.
É neste ponto que Últimas conversas, distancia-se de outros filmes do diretor, pois, devido à trágica morte algumas semanas antes do início do processo de montagem, o cineasta não executou o corte final do longa. Assim, coube a Jordana Berg e João Moreira Salles, parceiros de longa data do cineasta conversador, a importante missão conflituosa de preservar a verdade da filmagem enquanto concebe uma narrativa carregada de elementos ficcionais que é intrínseca a construção de personagens e conflitos.
Para Jordana Berg um aspecto importante foi a questão da autoria, os montadores estavam diante de trinta e duas horas de gravações, dirigida, criada e idealizada por Coutinho, e a dúvida era “o quanto a gente vai se apropriar desse lugar”. Inicialmente Joana Berg e João Moreira Salles optaram por montar um filme “coutinhiano”, de posse da transcrição com os grifos, e do caderno com as primeiras anotações gerais do cineasta, montaram o filme “que achávamos que ele teria feito”. Após quatro meses de trabalho concluíram o filme, porém, sentiram que aquela versão era insuficiente e decidiram iniciar uma nova montagem, desta vez não um filme como Coutinho teria feito, mas sim um filme “nosso” a partir do material dele.
A versão do segundo corte final e o título póstumo deixam claro que, para além de um filme de Eduardo Coutinho, Últimas conversas é também um filme sobre o diretor. Ao optarem por iniciar o longa com a presença do cineasta na tela, Jordana Berg e João Moreira Salles, o colocam também no papel de protagonista.
Desde Cabra Marcado Para Morrer (1964-1984), Coutinho decidiu filmar captando a voz do interlocutor e também a sua, fazendo com que a conversa a dois estivesse presente no filme de fato. Atuando como um diretor questionador em algumas obras, chegou a estar em cena nos seus filmes durante as abordagens, mas nunca como personagem.
Mas é em Últimas conversas que Coutinho assume o papel de protagonista de seu próprio filme. Sentado numa cadeira diante das câmeras, vemos Coutinho do outro lado, sendo questionado no papel de interlocutor, de certa forma intimidado, ou talvez desconfortável nessa posição. Ainda assim, ele toma a dianteira do filme e nos leva por uma estrada sinuosa, mas que também oferece algumas áreas de escapes que possibilitam uma condução mais segura.
Isso pode ser notado na conversa com Thiago, na qual o jovem relata a dificuldade passada na adolescência, afirmando que não se socializava com os demais da faixa etária, não se via fazendo parte daquele meio e não se sentia inserido naquele contexto. Este é o ponto de maior tangência entre Coutinho com um dos seus jovens personagens, é um raro momento em que o cineasta parece entender o seu interlocutor, e diferentemente de outros momentos do filme em que o silêncio simboliza a distância, aqui ele assume o significado de proximidade, de convergência de entendimentos.
Jordana Berg e João Moreira Salles ao montarem um filme também sobre o diretor, acertam ao exporem a crise existencial de Coutinho, evidenciando um estágio em que o cineasta parece estar em desconexão com o mundo e com o cinema. Em dado momento, ele deixa claro que aquilo que fazia com imensa alegria agora parece um fardo pesado a se carregar. O embate com os personagens se dá, no entendimento dele, pela falta de memória dos jovens, resultado do pouco distanciamento do tempo passado, e o cinema de Coutinho tem como um dos seus elementos centrais a memória dos seus personagens, é aqui então o início do abismo que o coloca tão afastado dos outros personagens do filme.
A dissimetria na conversa entre o diretor com oitenta anos e os seus interlocutores, jovens entre dezesseis e dezoito anos, é ponto central, o distanciamento é evidenciado ao longo do filme, deixando transparecer o quão estranho é aquele mundo dos jovens para o octogenário cineasta. A fala inicial de Coutinho gravada durante o quarto dia de filmagem, demonstra a sua frustração com os resultados obtidos até ali, pois sente que havia falhado na missão diante dos estudantes. Aliás, essas inquietudes e angústias são constatadas também durante a produção de outras de suas obras.
Mas o que parecia ser um problema para o filme, veio como solução, esse distanciamento entre Coutinho e os jovens, torna-se a questão central do filme, um fenômeno social contemporâneo constatado no não entendimento do imaginário dos jovens, por parte das gerações mais velhas, resultando num vácuo de interações entre essas gerações, que é vivenciado em casa, na escola, na igreja ou em qualquer outra organização social.
Embora o projeto inicial do cineasta fosse gravar com crianças, ele fez muito bem em dialogar com os jovens. Mesmo diante de todas as incertezas e dificuldades, a simples disposição de Coutinho em conversar, fica como exemplo para a sociedade que vive um momento em que a juventude luta para expor suas aspirações e reivindica o atendimento de suas demandas. Dessa forma em Últimas conversas ele tenta transpassar com certa dose de empatia o abismo que o separa do universo dos jovens.