por Álvaro André Zeini Cruz

O piloto de uma série é o episódio que “lapida o sonho e gera o som”, isto é, que apresenta os corpos e as órbitas mais basilares de um universo narrativo em pleno big bang: gênero, tom, relação entre personagens, níveis de conflito. Confissões começa com um conflito típico do início da adolescência — o primeiro beijo, evento que põe Natália (Daniele Valente) às voltas. Ainda mais porque ela é uma espécie de outsider entre as irmãs: não é segura como a mais velha, Diana (Maria Mariana), nem tem a impetuosidade — nuançada em faixas etárias — de Bárbara (Georgiana Góes) ou Carol (Deborah Secco). Carol, o episódio nos mostra, inclusive já resolveu o problema do BV (ainda se usa o termo?) na salada mista, brincadeira que também deve estar passada.
Em certo sentido, Natália assume um tipo recorrente nas séries adolescentes: filha adotiva de Paulo (Luiz Gustavo), ela é uma outsider já “trazida para dentro”, mas que guarda contrastes evidentes com as personalidades das irmãs. Ela não está de chegada como os irmãos Brandon e Brenda (90210, ou melhor, Barrados no Baile), Jen Lindley (Dawson’s Creek) ou Ryan Atwood (The O.C.), todos “cabeças de piloto” em séries teens, mas é a partir dela que as irmãs detalham os laços desta família ao passo que expõem suas visões de mundo, suas identidades.
Os depoimentos para a câmera — as tais Confissões do título — dão o tom entre diário e crônica e costuram o conflito episódico em diferentes perspectivas sobre a adolescência a partir da adolescência. Além disso, suprem o que me parece uma limitação de produção, já que uma parcela considerável do episódio (e da série) é feita desses talking heads, possivelmente gravados em poucas tacadas. São depoimentos ainda mais frontais do que aqueles popularizados pela comédia estadunidense anos depois, nas quais se tem a impressão de que as personagens conversam com alguém no extracampo, mas ainda na diegese. Em Confissões de Adolescente, as personagens falam diretamente para essa câmera-caderno. Ainda que calculem as linhas, meçam as palavras, discursam com franqueza, comentam como podem.
Mas voltemos aO Primeiro Beijo, título desse episódio piloto que começa com o depoimento de Carol (uma ainda menina Deborah Secco), que, do alto de seus 13 anos, não acredita existir quem não tenha beijado na boca — tal descrença guarda no subtexto a exibição de quem acaba de resolver esse problema. É a deixa para que Natália e as irmãs se apresentem e abram esse universo que as contorna (literalmente, nos backgrounds artisticamente calculados) e que data uma adolescência feita de festinhas embaladas por Axé, pôsteres do Tom Cruise em Cocktail, mas, principalmente, por telefones.
Nessa adolescência de telas intocáveis, é pelos fios telefônicos que se dão os jogos amorosos juvenis (mal feitos, no caso de Marcelinho, interesse amoroso de Natália, tipicamente mal assessorado pelo amigo que acha que sabe das coisas). É ao redor desse aparelho com design duvidoso (teclas! fios!) que paira o ápice da expectativa do episódio. É quando Natália ouve o outro lado da linha que Daniele Valente abre o mais adolescente dos sorrisos (também emoldurado na abertura), demandando de Daniel Filho o travelling in que formaliza esse deslumbramento com as pequenas-grandes coisas, possível talvez só ali. É também pelo telefone que se dá a melhor cena do episódio, aquela que reúne as quatro filhas ao pai, em viagem a trabalho. Quando Diana atende e anuncia Paulo, elas correm para diferentes aparelhos. Entusiasmada, Carol conta ao pai sobre seu beijo de 11 minutos e 51 segundos; Paulo, em seu papel, pondera, mas prevalece a abertura, a confiança e o frescor que oxigenam esta família. Quando Natália toma o “gancho” para denunciar que Bárbara escuta suas conversas, a acusada responde prontamente do outro lado, ironizando a crise da irmã mais nova. Nesse jogral de campos e contracampos amarrados pelo fio telefônico, o pai ralha, em vão. Bárbara capricha no carioquês adolescente parar responder na lata — “que que tem, pais, afinal de contas, você acha que inventaram extensão pra quê?”.
Clássico que volta agora à TV Cultura, Confissões de Adolescente é esse diário redescoberto menos com cara de crônica do que como documento de uma adolescência. No fundo, as questões são as de sempre, mas também são outras, porque são anos em que tudo o que há de mais interno transborda em algum momento, mas as superfícies dos mundos, a interface entre ontem e agora, é outra nesses trinta anos que nos separam. Narrativa com o paradoxo de ser direta e singela, Confissões de Adolescente resulta de uma sensibilidade criativa calculada, econômica, feita entre o texto da autora/atriz Maria Mariana e a direção de um Daniel Filho saído das novelas da Globo para outra realidade — a de uma emissora de televisão no outro polo.