por Álvaro André Zeini Cruz
Lúcio Kodato foi meu professor de fotografia no curso de Cinema, e lá entre 2007 ou 2008, arranjou um rolo de película para que nossa sala vivesse a experiência de rodar nesse suporte, hoje tão restrito. Se não me engano, foi ao término da segunda e última diária que alguns de nós retribuímos tal oportunidade convidando Kodato para experimentar algumas iguarias proporcionadas pela conta bancária universitária — o chopp e as esfirra do Habib’s.
A memória é meio ruim, e creio que jaz com o Orkut a única foto desse dia, mas acho que estávamos eu, Marcos (meu conterrâneo), Jaque, Cipriano, Hellen e Carlos; e se Carlos estava de fato, abre-se uma dessas dúvidas inquietantes, em retrospecto — por que diabos Kodato veio parar no meu carro e não no bom e velho Tomas, o fusca marrom do amigo que guiava muito melhor do que eu? Mas não, Kodato veio parar no banco do passageiro da minha Parati — que tempos depois foi roubada —, sob a direção de uma carta recém tirada (foram 6 meses de autoescola, feitos sem nenhuma pressa) de quem tinha igual segurança para dirigir veículos e curtas-metragens.
Não era um trajeto longo, mas era um bauruense dirigindo em Curitiba, numa época sem GPS. Sendo mais específico: era eu no volante; os amigos amontoados entre risos no banco de trás, divertindo-se com o papel do professor consagrado e desavisado, grande nome do cinema nacional que, ao se dar conta de uma direção sem o garbo e elegância de Morgan Freeman em Conduzindo Miss Daisy, assumiu para si o papel de copiloto alarmado. Dentro da Parati, que vivia com constantes problemas de bateria (mas que, aposto, pegou de primeira quando foi roubada), havia riso, apreensão e as palavras assertivas de Lúcio Kodato — Diminui!, freia!, vira!, cuidado!
Lá pelas tantas, Kodato ficou especialmente alarmado: “cuidado com o véio!” —berrou diante do senhor que cruzava a faixa, a uma distância que era inversamente proporcional ao aviso sobressaltado. Kodato não tinha como saber que, mesmo nesses primórdios de direção titubeante, pedestres e outros passantes correram pouco risco comigo atrás do volante. Minha predileção sempre foi (continua) pelos corpos estacionários, especialmente pilares e meio fios, milimetricamente posicionados para me pegarem desprevenido. Chegamos vivos ao Habib’s e, até onde sei, ninguém teve maiores traumas na carona de volta.
Anos mais tarde, reencontrei Kodato aqui em Bauru, num evento no Sesc; ele havia colaborado com um curta de alunos da Unesp e me convidou para o bar pós-exibição do filme. E, claro, me pediu uma carona. Era minha chance de provar que o ex-aluno talvez não tivesse progredido tanto no audiovisual, mas se tornara, ao menos, um motorista razoável. Do Sesc seguimos para um desses bares-restaurantes meio zumbis, que abrem, fecham e reabrem nas Nações Unidas. O percurso correu suave, sem sobressaltos; salvo engano, o próprio Kodato observou a evolução entre as caronas. Cedo demais, afinal as pessoas não costumam pular de carros em movimento; é preciso estacionar e os meios-fios seguem, para mim, esse dado dissimulado da arquitetura urbana, feito para personalizar rodas (meu pai até hoje não se conforma com as rodas do meu carro).
Lembrei de tudo isso porque vi que está acontecendo a semana ABCine, onde reencontrei Kodato, ano passado: embora não tenhamos perdido contato — trocamos inclusive nossos livros —, fazia tempo que não o via. Durante a conversa, Kodato falava com aquela alegria que lembro desde que fui seu aluno; aquela que a qualquer momento sobe o meio-fio do deboche. Quando passou por nós um amigo dele, desses figurões da ABCine, Kodato não titubeou em me apresentar — “Esse aqui foi meu aluno; agora é professor. Uma vez quase me matou numa carona! Dirigia mal…”
Forçando a barra, posso falar que codirigi (uma Parati) com Lúcio Kodato, um dos grandes nomes do cinema brasileiro.
(Abraço, Kodato! Nas próximas, podemos rachar um Uber!)