por Álvaro André Zeini Cruz

Fern caga na privada entre a cama e a pia da cozinha. Swankie bate inoportuna na porta da van.
Adiante. Swankie doa seus poucos pertences; um deles feito pela avó. “Aproveite. E cuide bem dele”, ela aconselha sobre o objeto incógnito no extracampo. Já se foi, sem jamais ter sido visto.
Adiante. Fern limpa vasos sanitários com Linda. Linda revela a Fern e Davie que quer construir uma casa autossustentável, feita com as próprias mãos, para deixar aos netos.
Antes. Fern para diante de um “saloon” carcomido, mas que se autossustenta, no sentido de permanecer de pé. Escombro teimoso.
Adiante. Davie quebra a louça de Fern sem querer. Fern manda que ele saia, que se mova para longe dela. Sozinha, ela cola o prato, tão cicatrizado quanto inanimado.
Entre luscos-fuscos, Fern carrega batatas, fritas batatas, limpa bosta, trabalha na Amazon. Trabalha numa “Empire”, depois de morar em Empire, ironia dessa cidadela-fantasma, cuja vista sempre deu a lugar nenhum. Noutra cidade, passa diante do cinema que anuncia o apocalipse em letras garrafais: “The Avengers”. Sozinha, toma Coca-cola num plano-cópia mal acabada de Hooper.
Reencontra Davie, que tem diverticulite, assim como Swankie tinha câncer. Fern envelhece sob uma palidez que reflete as cores do céu. É uma fantasmagoria entre pores do sol. Como sua antiga cidade, que fez do corpo dela estaca, enquanto, na verdade, as células são nômades que partem o tempo todo para não retornarem aos vincos deixados. A fotografia do marido jovem é uma permanência sem vincos. Mas tem um rasgo.
Talvez o nomadismo dessas pessoas pelo espaço seja uma questão menor diante do nomadismo das moléculas, das células, dos átomos que deixam os corpos ao longo tempo. Existências orgânicas que tentaram se alimentar do mundo ao redor, mas que acabaram enraizadas numa relação oposta, nutrindo o que é inorgânico.
Agora desnutridos, esses corpos são catapultados pelos horizontes de Chloé Zhao, que lembram os horizontes de Terrence Malick. As aproximações vão além: a câmera de Zhao parece uma irmã mais comportada – por isso melhor – do pastiche de si próprio que se tornou o cinema de Malick pós “Árvore da Vida”. As imagens não escapam de alguns chavões de certo cinema de arte norte-americano (os cartões postais de fim de mundo, o corpo nu sobre a água), mas também não temem associações inesperadas, como com a música melodramática rasgada.
“Nomadland” olha para efeitos do capitalismo sobre os Estados Unidos contemporâneo, mas esse retrato é sempre melhor quando se concentra nas marcas deixas pelo sistema sobre esses corpos lançados para fora da órbita. O plano geral de um jantar singular – porque realizado dentro de uma casa alicerçada sobre o chão – ilustra a maneira como Zhao vê essas figuras: na mesa, a família bem iluminada (mas sem importância) é distribuída na encenação em profundidade, contrastada aos contornos de Fern e Davie, protagonistas-silhuetas que rebatem um ínfimo da luz em primeiro plano.
Corpos crepusculares esses de Zhao, tal qual eram os de Malick em meio aos campos de trigo amarelados. Lá, no entanto, esses corpos se desfaziam enquanto plantavam (ordenados) as desigualdades do mundo. Aqui, a colheita é parca, as plantações incendiaram, as batatas parecem pedras e o solo é tão cinzento quanto esses nômades-sombras (amarelado mesmo só o arenito, essa formação que se desfaz). Se o filme de Malick retratava o início de um século de “Cinzas no paraíso”, para Zhao, cem anos depois (do tempo histórico do filme de Malick), sobraram aqui as cinzas; o paraíso é o céu. Ironicamente, é um filme melhor quando esquece do deslumbramento provocado pelo telescópio e olha na lupa o close crispado de Frances McDormand.