“You don’t fuck with the original”

Por Felipe Cruz

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Wes Craven provocou o olhar de muitos, provavelmente de toda uma geração, quando, em 1996, apresentou o pesadelo vivido pela mitológica Sidney Prescott na pequena cidade de Woodsboro. E desde o fatídico telefonema que Drew Barrymore não deveria ter atendido, Pânico foi uma série subversiva e autoquestionadora, refletindo sobre (e reconstruindo as) leis que regem o slasher. Sempre foi, portanto, perceptível o poder que a metalinguagem exercia nas mentes de Wes Craven e Kevin Williamson, dupla que esteve envolvida em todos os filmes da série (Craven dirigiu todos e Williamson só não escreveu o roteiro do terceiro, que, no entanto, produziu). Era inesperado, ainda assim, que essa metalinguagem retornasse como carta de amor ao cinema de horror em Pânico 4.

O filme, é claro, não se engrandece apenas por reconhecer todos os ótimos membros que o precedem na família da qual faz parte. Trata-se, antes, de uma necessidade levada às últimas consequências por Craven que, de um contexto social-histórico-técnico, extrai o que de expressivo as mudanças em nossa percepção de tempo, velocidade e imagem tem a oferecer a seu universo fílmico.

Tanto o roteirista quanto o diretor parecem sardonicamente fascinados pela nova concepção de imediatismo como um correspondente de informação ou, ainda mais grave, de expressão. Imaginemos os dois se deparando com “fenômenos” como o Facebook, a multiplicação dos blogs, a tecnologia portátil e se perguntando quais efeitos tais circunstâncias teriam naquele universo narrativo criado 19 anos atrás. Desta suposição estético-narrativa temos o cerne de Pânico 4 – um filme que olha com interesse para a geração que tão rapidamente decodifica códigos, mas que também desconfia que esta não seja tão sensível à compreensão do motivo desses códigos terem se tornado tradição, afastando-se do processo de subversão e renovação que tanto atrai a juventude.

Temos, então, nas primeiras sequências, as várias jovens que nos remetem à final girl-matriz, Sidney, assistindo inúmeras versões de Stab (falsa série de filmes criada desde o segundo Pânico para representar os acontecimentos de Woodsboro): elas criticam as convenções que todos conhecemos muito bem ao mesmo tempo em que mostram o quanto esta cartilha pode ser facilmente descartadas, bastando para isso alguma pitada de rebeldia, bom humor e irresponsabilidade (movimento denunciado e celebrado pelo próprio filme, que sempre nos engana levando-nos a crer que estamos assistindo a uma introdução “real”). Estas primeiras sequências não são apenas uma piada-paródia sobre mundo ultrapassado, mas sim uma defesa da maneira como o cinema tornou-se pai do suspense, celebrada desde o primeiro plano, no primeiro Pânico: uma garota sozinha e segura em casa, o telefone toca, uma voz diabólica a ameaça, ela nunca esteve sozinha ou segura, ela não sabe onde está o assassino, ela vai morrer.

Após tantos falsos começos, chegamos à original final girl: reencontramos Sidney, Gale e Dewey, agora acompanhados por Jill, sobrinha de Sidney e possível nova herdeira de sua maldição, e pela presença massiva de uma novidade: as câmeras amadoras. Câmera que Gale segura e revela o assassino que se aproxima dela ao marido assistindo à cena e explodindo em angústia; câmera do geek que anda sempre presa à sua cabeça, registrando tudo o que ele vê e transmitindo as cenas, em tempo real, para seu blog (ponto de vista adotado para mostrar ao personagem que ele também irá morrer – última instância da câmera subjetiva); câmera que o próprio assassino esconde em uma festa para registrar sua “obra de arte” e eternizá-la através de imagens em movimento e, por fim, câmeras que tornaram mundialmente conhecido o caso de Sidney e que criaram o seu mais terrível algoz: o assassino que se apresenta como vítima para atingir alguma notoriedade pública.

Pânico 4 é o filme mais opaco de toda a série – sendo-o plenamente em um gênero que, aparentemente, necessita da transparência para atingir o essencial envolvimento do público com sua narrativa. Evidentemente não está nisso o seu maior mérito, mas sim em cenas exemplares em rigor e vigor, como a revelação da identidade do assassino: em um jogo de duplicação de causas e efeitos, de inversão da moral da vítima e de releitura das leis do horror, Craven e Williamson exploram toda a abrangência do amor que têm por aquele universo. É quando a nova vítima (descendente direta de Sidney) realiza a mise-en-scène da qual se beneficiará temporariamente (tal qual os maridos assassinos de Janela Indiscreta Um Corpo que Cai) que Pânico 4 retira sua última máscara e revela a sua mais aterradora face: é tudo tão “espetaculoso” que a própria dor de se ver atirado em meio a perseguição de um assassino alucinado se tornou encenação.

Seria de se esperar que Craven e Williamson se perdessem em algum momento nesse baile de máscaras que acontece dentro de uma sala de espelhos, porém é justamente a capacidade que ambos possuem de fazer com que público e personagens não esqueçam aquilo que é o alimento para a existência e permanência daquela realidade que faz com que jamais percamos o norte da estrutura narrativo-estética deste filme – e este norte, não há como ser de outra forma, é a sobrevivência de Sidney Prescott, como um plano e uma frase tão bem mimetizam.

O plano: Sidney e Jill, deitadas diante uma da outra, ocupando a mesma posição cênica que é, no entanto, narrativamente oposta, logo após a reencenação do desfecho do primeiro filme que serve de falso-desfecho para este último. A frase: Sidney, após arrancar na unha a última camada de artifícios e mentiras arregimentadas pelo assassino, vocifera para seu vilão “- You don’t fuck with the original!”.

Wes Craven, que tem em Sidney Prescott sua Madame Bovary, usa a voz de seu eu-lírico feminino para deixar este legado: dentro do clássico vive a iconoclastia, todas as vezes que a imagem sagrada de Sidney quase é aniquilada ela se eterniza – e assim vive para sempre o mundo gerado por ela.