Por Mateus Moura
Querida Chantal,
Este texto não é uma crítica. É um lar que construo para te encontrar, minha igual.
Hoje é dia 28 de fevereiro de 2016, noite do Oscar. Segundo os noticiários, o “dia mais importante do cinema no ano”. Quantas milhares de pessoas ao redor do mundo se reúnem para acompanhar este evento? Celebram o cinema? Aproximam-se?
Neste dia, isso eu sei, celebrei o cinema na casa de minha mãe, ao assistir em sua sala o filme que você, na casa de sua mãe, realizou.
“No home movie”. 39 anos depois de “News from home”. Ainda a paisagem externa revelando o interior na duração do plano. Ainda o não-pertencimento de um corpo em relação ao mundo, e a inefável e sublime beleza que se produz deste atrito silencioso, decantado por uma ferramenta que registra justamente o intervalo que suscita este vazio.
Não faz nem 6 meses, Chantal, que saíste deste plano material. Aqui ainda se sente o peso desse silêncio, o vácuo que cavou a tua ausência.
Em conversa com tua mãe pelo Skype, dizes que fazes um filme para mostrar que não existem mais distâncias.
39 anos depois, o mundo muito mudou. Não são mais cartas que se trocam pelo correio, e que atravessam milhares de milhas para atingir o seu destinatário. Nem imagens que se guardam em películas e que demoram meses para serem reveladas, superpostas, expostas enquanto duração num filme que se projeta no escuro de uma caverna. Tudo agora é imediato. O tempo, quase nunca se sente passar.
Neste filme de fantasmas, de mulheres, eu sei, não existe lar. Talvez a imagem? É para lá que caminham os imigrantes, os fugitivos? Era lá que procuravas teu lar? Neste réquiem há uma melodia que vem do acaso que arrumas. É nessa arquitetura que procuras uma harmonia?
Fica óbvio que teu lar não é com tua mãe, ela que também não se encontra em um lar, mas prisioneira nesta casa onde a cadeira de sol está sempre abandonada no jardim.
Justapostas à casa, há as travessias. O eterno percurso judeu rumo ao prometido lar pelo árido deserto de Israel, atravessando montanhas que ecoam silêncios insondáveis, buscando a árvore que se verga diante da forte ventania. Em tua viagem não encontras tantas coisas além de tua mãe, a figura de um patriarca de costas, outra imigrante, que não atinges e que não te entende bem.
“No home movie” é obra onde a paisagem e o (auto)retrato encruzilham-se para descobrir, entrevistar. Não é obra para o Oscar, ou para prêmio algum. Não é atual, nem universal. Não é testamento, nem biografia. É biologia, registro, diário, ofício, sacrifício. É mais uma obra tua, Chantal, tu, que tantas obras, em tantos gêneros, deixaste ao mundo. É tua e isso basta, e foi isso que sempre bastou, não foi? Dar a si mesmo a oportunidade de se aventurar na linguagem… com o cinema, a fotografia, a pintura, a dramaturgia, a música, a dança, a performance, a arquitetura, a literatura. Ah, a linguagem, ali sentias a sensação que a religião não pôde te dar, que a nação não pôde te dar, que a tua raça não pôde te dar, que a família não pôde te dar. Ali pertencias; ali, no eterno, transcendias. Lar, não no filme-objeto, mas no tempo feito memória-matéria – a essência do cinema.
A “imagem-Chantal”, este corpo&voz sacrificado ao tempo, que em tua obra ganhou visibilidade em tão grandes momentos, tem o seu último suspiro neste plano infinito, onde veste as botas, fecha a cortina e imprime a silhueta, antes da derradeira viagem.
Após o adeus, só nos resta a casa, a arquitetura que a tudo observou, indiferente. Em cima de uma mesa na sala, entre duas portas abertas, a urna com cinzas repousa imóvel, parte da mobília.
Sua mãe passou, Chantal, você também. Na duração, há algumas horas, estava eu sozinho em vossa casa em Bruxelas, quando tudo escureceu e logo me enxerguei em minha casa em Belém. E vi, como disseste, o quão pequeno é o mundo, e quão ilusórias são as distâncias. De ti, por exemplo, sempre fui extremamente íntimo, e nunca sequer estivemos no mesmo país.
No dia 05 de outubro de 2015 partiste, não sei para onde.
A herança, mamãe Akerman, não deixaste em corpo e sangue, mas em luz e movimento. Por estas bandas, pode deixar, teus filhos sempre cantarão, serão ouvidos.
um abraço onde se sinta a duração,
do teu
Mateus Moura.