Por Álvaro André Zeini Cruz
Olhares desatentos (como o de Pierre Murrat, da revista Télérama) podem enxergar abjeção – termo inerente à própria história do cinema desde a crítica de Rivette – em Corrente do mal (It follows, EUA, 2015), de David Robert Mitchell. Haveria, se o sustentáculo do filme fosse de fato o sexo, ato que, segundo André Bazin, em outro texto histórico, tem intensidade imagética equivalente à da morte. Não é bem o caso aqui: o abjeto se delimita à corporificação das assombrações; não contamina a linguagem cinematográfica, muito menos a visão de mundo construída através dela. O sexo é, sim, importante à intriga – através dele, passa-se uma maldição adiante – mas suas representações são tão breves e ponderadas (com exceção da primeira transa, estilizada por um travelling in que sublinha o incidente incitante) que não se comparam à potência de uma tríade de imagens – todas planos detalhes, – milimétricamente compostas para serem o coração do filme.
A primeira imagem surge após a meia hora inicial: perseguida em pleno colégio por uma fantasmagoria invisível aos olhos dos demais, Jay (Maika Monroe) passa a noite acompanhada por amigos. O franzino Paul (Keir Gilchrist), apaixonado por ela, assiste a uma ficção científica em preto e branco no sofá da sala, quando Jay – num retrocesso que a leva de mulher à menina indefesa, enrolada nas cobertas, – entra e revela não conseguir dormir. Paul então abre espaço para que dividam o sofá. A utilização do plano aberto, que se segue quando ela senta, não consegue disfarçar o olhar de esguelha lançado a Jay, mas potencializa a imagem a seguir que vem desses dois corpos: os pés delicados e descalços dela, que, num sutil movimento, se aproximam das pernas do garoto, sem, entretanto, sequer tocar-lhe a calça do pijama; um quase toque intenso o bastante para merecer uma moldura própria e próxima. Também para puxar um novo olhar de Paul (desta vez mais contundente), a promessa de que tudo ficará bem e a confissão de que, apesar dos pesares, ele está feliz por estarem próximos, juntos. A confissão dele desencadeia a réplica revelatória: Paul foi o primeiro beijo de Jay. Daí em diante, as lembranças do início da adolescência – e da sexualidade – passam a pulular nessa cena-hiato, que suspende temporariamente o sobrenatural. Contudo, a cercadura do gênero logo se refaz e o horror ressurge ao anúncio de um vidro que se estilhaça. O algoz invade a casa e é preciso partir para criar uma distância mínima – e um respiro – dessas fantasmagorias que, embora lentas, estão em cinética constante e implacável.
A fuga se dá entre adolescentes: as vidas desses jovens de um inóspito subúrbio americano parecem despovoadas da presença adulta. O sexo – ato que dissemina a perseguição das aparições maléficas – é evitado ao máximo, até que Jay opta por se relacionar, não com Paul, mas com Greg (Daniel Zovatto), aparentemente mais provável a sobreviver à perseguição. O plano falha e o enlace entre os corpos retorna não mais como imagem, mas como uma ausência, uma sugestão; em seu refúgio litorâneo, Jay tira parte da roupa e mergulha em direção a uma lancha ocupada por três rapazes. O ato sexual, esse encontro, a priori único entre corpos e espíritos, é ressignificado, desprovido até mesmo da imagem para evitar qualquer carga de erotismo. Paul, objeto do afeto que seria, a princípio, o protagonista natural deste encontro, torna-se a última das opções não porque Jay não se importa com ele, mas talvez porque ela realmente se importe. O sexo, poesia ápice dos toques, reduz-se ao coito, sinônimo insípido usado nas falas formais, conforme o horror se instaura como um intruso antagônico ao que deveria reger aquelas existências.
O sentimento que Jay tem por Paul emerge dessa latência auto-protetora na conversa que ambos têm no quarto: ele se prontifica ao sexo como um ato duplo – de salvação, mas também de bem-querer – e questiona por que Greg ao invés dele. Quando Jay explica suas razões (segundo ela, porque tiveram um flerte nada sério e porque achou que Greg ficaria bem), o silêncio traz a montagem voraz: as mãos sobre o carpete se potencializam ainda mais através do corte, que aproxima a câmera e engrandece o gesto vindouro – um breve, porém veemente encontro entre os dedos que se encostam e se acarinham, num plano cuja intensidade é maior do que em qualquer encontro sexual visto até então.
O clímax acentua as marcas do gênero: a piscina pública contraposta ao céu de nuvens trovejantes é transformada praticamente numa mansão mal-assombrada. A resolução, entretanto, permanece em suspenso: incertos da eliminação da maldição, Jay e Paul finalmente se amam. O encontro desta vez retém a lente da câmera, que, todavia, sublinha os rostos e os olhares (o toque das almas), antes de se desvencilhar para a janela, como se quisesse dar privacidade a essa junção singular que tem, como única presença concorrente, a da chuva que cai.
O verbo amar, usado há pouco, não é aleatório; pelo contrário, foi resguardado com o mesmo cuidado com que Mitchell balizou seus planos detalhes, para aparecer neste momento do texto. Pois se o sexo é a uma aparição importante, mas pontual, há um espírito impregnado que perambula pelo filme, do poema de T. S. Eliot (“A canção de amor de J. Alfred Prufrock”) declamado na cena da sala de aula, ao monólogo no quarto de hospital. Corporifica-se rapidamente nos gestos mínimos, como os olhares e os silêncios compreensivos entre Jay e Paul; de forma definitiva nos dois planos já descritos e, por fim, no derradeiro, o detalhe das mãos dadas durante um caminhar – as mãos desta vez em permanência, numa total sinergia dos corpos e dos toques. É o plano pregnante de um outrora titubear adolescente que agora se torna firme, intenso, digno do plano-irmão realizado por Howard Deutch em A garota de rosa-shocking. União que, por sinal, é simultaneamente certeza e dúvida: as mãos velam a aparição de um novo perseguidor (será um fantasma ou um simples passante?); Mitchell acentua os mistérios que circundam um mundo que, segundo ele, tem o horror em sua constituição. A certeza, rara e inigualável, que luta durante todo o filme para ganhar forma, é também uma sentença anti-baziniana: a imagem intensa não é a do sexo. A imagem intensa é a do amor.