Por Felipe Cruz
“Sabina disse: – A beleza involuntária.
É isso mesmo. Poder-se-ia dizer também: a beleza por engano.
Antes de desaparecer totalmente do mundo,
a beleza existirá ainda alguns instantes, mas por engano.
A beleza por engano é o último estágio da história da beleza.”
(A insustentável leveza do ser, Milan Kundera
Últimas conversas é um filme predestinado. Quando Eduardo Coutinho começou sua produção, no 2º semestre de 2013, não haveria maneira de compreender o que ele viria a significar.
Os elementos são os mais familiares possíveis para quem assistiu a Edifício Master, Jogo de Cena, Moscou, As Canções, etc.: uma cadeira, um palco (seja ele um apartamento ou uma sala de aula) e uma voz. A voz muito pesada de Coutinho, agora acompanhada de seus longos cabelos brancos, suas geográficas rugas, seus olhos que parecem quase ceder à pressão das pestanas. Não é a primeira vez que o vemos em um de seus documentários, mas é a primeira vez que o vemos falando tanto, e com tanta convicção, a respeito de seu descontentamento com aquilo que filmava já há quatro dias. É a primeira vez que o vemos sabendo que ele já não é vivo.
Após sua morte, Últimas conversas perdeu para sempre a possibilidade de ser o filme que Coutinho seria capaz de fazer, e é a sensibilidade de João Moreira Salles e de Jordana Berg em reconhecer de imediato essa impossibilidade que faz deste último projeto tão poderosa elegia.
Na 1ª cena o diretor critica duramente o dispositivo escolhido por ele mesmo: entrevistar estudantes da rede pública, todos adolescentes. As entrevistas não fluem, os jovens não têm nada a dizer – impacienta-se Coutinho – e a vontade naquele momento é simples: abandonar a ideia, começar novamente.
Corta. Entram os adolescentes. Começamos a assistir a sequência de entrevistas às quais o diretor se referia no 1º plano do filme. Máscaras de prepotência, fragilidade e carência acumulam-se durante a projeção. Nunca em um filme de Coutinho pareceu tão difícil extrair algo de verdadeiro dos entrevistados – e nunca o “de dentro” das coisas mostrou-se com tanta grossura e falta de tato. Vez por outra rompe algo profundamente lírico: a jovem cantando, em close libertador, uma música do Roxette acompanhada pelo som estourado de seu celular; um poema lido precipitadamente, como a primeira respiração de um afogado, por mais um jovem que não acredita em Deus; o silêncio humilhante ao qual é sujeito um dos adolescentes, tanta necessidade ele possui de preencher o silêncio que espanta a todos nós.
O que ecoa, contudo, são as frequentes intervenções de Coutinho – e o severo incômodo que elas traduzem. Estranhamos tanta intolerância declarada e nos afligimos à sensação de ser aquela a despedida que teremos. Nos incomoda o tanto que aqueles adolescentes querem “parecer” e nos perguntamos quando um deles, enfim, “será”. Um sabor amargo empesta o filme e nos ressentimos da ignorância da Juventude. É preciso dizer a ela até que deixe a porta aberta ao sair, tamanha sua surdez. Saem os adolescentes.
Corta. Vem em direção à câmera um corpo pequeno e assustado. Olhos brilhantes e mãos como asas. É a Infância. Ela tem 6 anos e recebeu o nome de Maria Luiza. Como por milagre lembramos – “Há crianças!”. E, como por milagre, Coutinho desperta de sua frustração e conversa. O fim encontra-se com o princípio e a harmonia do círculo se instala. As perguntas levam a respostas e Maria Luiza olha para fora – não é, ainda, prisioneira de seu corpo e de sua aparência. Compreendemos que, só nesse momento, começamos a assistir ao filme que Eduardo Coutinho provavelmente escolheria fazer, mas a porta foi trancada pela morte – aquela, única capaz de completar o ciclo da vida. E a criança encanta, e estamos sorrindo, e Coutinho enxerga todo um filme a ser feito diante de seus olhos, como em um sonho, e estamos agora todos sonhando, e quando Maria abraça Eduardo a vida chega ao ápice, para que então possa cessar, e lembramos que só é dado morrer a quem viveu, o que para Coutinho significava filmar; e entendemos que Eduardo Coutinho foi um desses homens que viveu: com tamanha grandeza que é, agora, infinito.