Por Álvaro André Zeini Cruz
Nesta selva de pedra, você perdeu o seu principal prazer de viver. É o que diz o homicida invasor de sonhos – que encobre seus crimes em aparentes suicídios, – à Keiko, a detetive que o investiga em Caçador de pesadelos (Akumu Tantei, Japão, 2006), de Shinya Tsukamoto. Tal linha de diálogo sintetiza a premissa que atravessa a trama: a de que vivemos tempos em que a ideia de dar cabo à própria vida é um germe sempre presente, ainda que latente, à espreita de uma oportunidade de se desenvolver. “O”, o assassino vivido pelo próprio cineasta, é a potência que vai se aproveitar desta semente e transformá-la em vida que finda, e sempre de duas formas – um homicídio no plano dos sonhos, onde há um encontro (seguido pelo abate) espiritual entre algoz e vítima; e um suicídio maquinal e nauseante no plano corpóreo, cometido durante o sono.
Esse embaralhamento entre espiritual e corpóreo é também caro a outro cineasta japonês contemporâneo: Kiyoshi Kurosawa. Este, no entanto, dá a um universo temático semelhante (principalmente nas obras-primas Cure e Pulse), tratamento oposto ao de Tsukamoto – enquanto o mundo para Kurosawa é sempre elegantemente tomado pelas fantasmagorias até tornar-se completamente etéreo, para Tsukamoto, vivemos o reino das superfícies, cada vez mais afiadas em suas lâminas, que, aqui, retalham todos os corpos – daqueles que habitam a diegese ao próprio filme.
A coincidência temática é, assim, implodida em um abismo: Kurosawa é um encenador hábil em encher seus vastos e intrincados espaços de nuances prontas a testarem o olhar; Tsukamoto, por sua vez, monta uma vitrine que toma todo o campo de visão para, em seguida, explodi-la em lascas que atingem os olhos com maior virulência até do que a da navalha de Um cão andaluz. Em Caçador de pesadelos, das lâminas arquitetônicas dos arranha-céus entrecortados às folhas dos estiletes e facas empunhadas, tudo se ordena para atravessar a carne. Não para simplesmente extirpá-la em duas ou três partes, mas para torná-la um novo corpo, irreconhecível, mas, principalmente, grotesco. Essa é a ação do mundo sobre os corpos, segundo Tsukamoto; ao menos, é o que está na imagem-síntese do corpo submerso e enrugado que pousa sobre a hélice opressora de um navio naufragado (a fragilidade da pele frente à lâmina).
Não basta, entretanto, o corte agudo das superfícies; é preciso amolá-las constantemente nos contrastes e estilizações: da difusão aérea que contorna a faca, passando pelos filtros sobre a lente, pelos tremores caóticos da câmera na mão, ou pela violência dos zooms repentinos, a imagem, por ser de espessura fina, torna-se maleável a tal ponto que até a montagem acaba atingida – numa cena, por exemplo, o close de Keiko dá lugar a um plano dela mais aberto, sem, no entanto, obedecer o raccord de eixo ou a regra clássica dos 30º. Tsukamoto e sua câmera-navalha não se contentam em recortar o mundo em sua diegese; entendem o filme também como corpo. Sendo assim, não há porque sair ileso.
Diante de tal estilhaçamento, que parte da trama e afeta toda a forma, não nos deixamos cegar, talvez porque a repulsa, vez ou outra, nos faça proteger os olhos. Contudo, somos, sem dúvida, violentados por esse filme corpo-abjeto-destrinchado. Se, para Kurosawa, o horror é uma experiência sobrenatural inevitável, tal como tantas outras experiências do espírito, um diálogo de “O”, o assassino, resume o tema para Tsukamoto: “nós somos o terror do mundo. Só nós podemos aterrorizar aqueles que esqueceram do horror!”. Kurosawa, o cineasta-monge, nos faz lembrar que há inúmeros mistérios provenientes do mundo não corpóreo; Tsukamoto prega o oposto: pode até haver além, mas o que dói, arde e sangra é o corpo. Tem-se, assim, o cineasta-açougueiro.