Por Miguel Haoni (com sugestões de Leticia Weber)
Ática forma! Sóbria atitude! em guirlandas
De mármore, donzelas e varões enleias
Com ramos da floresta e o joio espezinhado;
Tu, forma silenciosa, abalas-nos a mente
Qual faz a eternidade: ó fria Pastoral!
Quando esta geração o tempo houver tragado,
Tu permanecerás em meio de outras queixas,
Amiga do homem, a quem dirás: “A beleza
É verdade, a verdade beleza” – isto é tudo
Que sabemos na terra e que importa saber.
John Keats, Ode a uma urna grega.
Em 2015, uma das mais importantes aulas de cinema que tive o privilégio de ter foi dada por Marcel Proust no seu O caminho de Swan, primeiro volume do romance Em busca do tempo perdido. O texto oferece uma coleção de pontos de vista iluminadores sobre os invisíveis objetos do cotidiano. O olhar de Proust anima de tal forma as suas cenas que lhes restitui o paradoxo essencial: o reconhecimento na clareza e a novidade no mistério. Tudo na sua prosa é a um só tempo o Mesmo e o Outro. Como são as coisas na vida.
A lição aprendida foi que uma das funções do artista é a observação. Quando a nossa percepção é adormecida pelo hábito e os elementos da existência passam a ser obstáculos para nossa objetividade eis que surge o artista com seu olho vigilante e delicado e nos oferece uma perspectiva nova, insólita, inspirada e que encurta a distância entre nós, quem somos e a realidade do nosso mundo.
Se o primeiro gesto artístico por excelência é o da minuciosa observação, sua necessária contraparte é a expressão. É nesse momento que a reconstituição da experiência passa pela aventura da linguagem, dos meios e materiais de sua construção. No caso de Proust, a língua francesa.
O estilo neste momento, como diria o crítico de cinema André Bazin, não serve para acrescentar beleza e sentido à realidade, mas tão somente para melhor revelar a beleza e o sentido que nela já estão contidos.
Outro exemplo: imagine comigo a figura do pintor en plein air percorrendo os campos durante um dia inteiro, estudando as condições atmosféricas do lugar, o comportamento da luz e a vibração da cor na paisagem, sua harmonia, movimento e equilíbrio, na busca incessante do lugar em que finalmente plantará o seu cavalete, num ponto de vista que lhe oferecerá a verdade (outro nome para beleza) da sua relação profunda com este espaço.
Pensemos neste mesmo pintor agora no estúdio, estudando os gestos e posturas do seu modelo para retratá-lo da forma mais justa. Escolhendo a expressão a imortalizar na tela todos os atos do profissional são ao mesmo tempo atos de amor, pois a beleza (outro nome para verdade) que daí nasce é filha do cruzamento entre este olho e o corpo que observa.
A algumas linhas já estamos falando de cinema. Se substituirmos pintor por cineasta, cavalete por câmera e modelo por ator, o nosso personagem hipotético ganha a identidade de um Louis Lumière, John Ford, Roberto Rossellini ou Eric Rohmer. Neste texto, ele (no caso ela) se chamará Axelle Ropert.
Por insistência dos amigos assisti recentemente ao filme Mostre a língua, moça. Um filme cheio de momentos de beleza infinita, como este:
Estas três imagens estão diluídas em um único plano em panorâmica. Trata-se aqui da apresentação da personagem pivô no conflito central do filme, o zênite do triângulo amoroso. Este é um plano solto, sem antes ou depois narrativo que o justifique e substancialmente antecipado em relação ao lugar do personagem na trama. O que fascina, entretanto, é a panorâmica. Base gramatical do filme, este aspecto denuncia a herança de Otto Preminger: a panorâmica opera uma economia de imagens, ela substitui um campo visual por outro, presente em potência e subitamente revelado. Um cineasta não move gratuitamente a câmera para a esquerda ou para a direita sem que haja a consciência de um ponto de chegada neste trajeto. Ponto de chegada plástico, narrativo, emocional. No plano acima o campo revelado para onde se dirige a personagem é ocupado por bolas de luz e cor. Estímulos sutis, suave erotismo. Este é o espaço da personagem: o espaço pictórico.
Não se trata somente de inserir a figura contra um fundo bonito. Muito menos de oferecer um símbolo para os leitores de imagens (a mulher traz a luz e a cor para a vida dos dois homens). A busca aqui me parece ser a de convidar a percepção do espectador a um mergulho neste campo onírico, enigmático que é o da personagem. Ao mesmo tempo em que, respeitando o mistério, nos oferece a mais justa aproximação de sua profunda e simples verdade.
A busca pela personagem passa evidentemente pelo corpo da atriz. Sua materialidade, que no cinema é condição vital para a expressão poética. Esta matéria é o encontro dos gestos, expressões e posturas com a luz e a cor. E neste campo o filme nos lembra os retratos fauvistas de Kees van Dongen:
- Braços nus
- A cigana
- O chapéu vermelho
- Retrato de mulher

A adolescente no espelho
A mise en scène de Ropert concilia a elegância clássica (a emoção como produto do estudo) com a dramaticidade do colorido (a emoção como produto do instinto) numa harmonia rara. Seus tons violáceos, rosas e vermelhos são violentos e livres. Mas numa selvageria calma. Tomemos por exemplo as duas últimas imagens apresentadas acima. Temos os mesmos elementos: o cabelo, a luminária, o buquê (o rosto por sua vez é quase a reprodução de Braços nus), mas dispostos de forma contrária. Uma imagem contém a outra. O cabelo escovado, a luz encapsulada, o buquê firme. Trata-se da cena de conflito entre o novo namorado e o antigo, recém-chegado. Pensando na condição dramática é quase como se as imagens compusessem uma sucessão entre a pressão e o alívio. Falta, entretanto, o espelho.
E é justamente ao espelho que Ropert nos oferece a mais fulgurante passagem do filme:
A adolescente no espelho vista de costas e com o coque em espiral provoca reminiscências hitchcockianas: a cinefilia adolescente, o romantismo, os sentimentos subdesenvolvidos do “Scottie” que nós e os personagens masculinos do filme nos tornamos diante desta “Madeleine”.
A chamada do celular é a chamada do real. O abismo das ilusões.
Num leve tilt, a personagem calça os sapatos. Azul, amarelo e vermelho explodem surdamente.
De frente para a câmera (para o espectador): uma lágrima.
(Quanta história está contida nesse gesto?)
No plano seguinte, a personagem respira fundo para a sua entrada em cena:
E numa panorâmica…
… ela assume seu posto como prisioneira das cores e das luzes.
Não à toa os artistas chamam a beleza de verdade e vice-versa. O mais importante, entretanto, é que a Madeleine de Hitchcock é também a madeleine de Proust. A coisa simples, banal, que por sua vez guarda o infinito. E que numa colherada ou num filme indicado pelos amigos nós podemos reencontrar.