In between days

Por Juliana Maués

singstreet

Família passa por dificuldades emocionais e financeiras; garoto adolescente é obrigado a mudar de escola para uma opção mais adequada ao novo orçamento doméstico; segue-se jornada de inadequação e busca por pertencimento, culminando na formação de uma banda e, em meio a tudo isso, o interesse amoroso por uma garota problemática. Com um argumento básico cheio de clichês, são vários os modos em que Sing Street poderia dar errado, mas ao escolher ter a música como guia, o diretor John Carney foi não apenas capaz de fugir às armadilhas do roteiro, como produziu um filme que, apesar de flertar com temas pesados, é de uma leveza e vontade de viver irrepreensíveis.

Vindo de outros dois filmes em que melodias e canções desempenham papel fundamental, John Carney já parece construir uma tradição em sua curta obra. Em cena do imediatamente anterior – a pequena obra-prima “Mesmo se nada der certo” – , os protagonistas usufruem a trilha proporcionada pelo fone de ouvido compartilhado enquanto observam cenas comuns de mais um dia movimentado nas ruas de Nova Iorque. Um deles diz: “Isso é o que eu amo na música. As cenas mais banais são repentinamente investidas de tanto sentido, sabe? Todas essas banalidades, elas repentinamente se transformam nessas belas, efervescentes pérolas, por causa da música”. A fala sintetiza o projeto de cinema que Carney vem realizando desde o seu primeiro longa, “Apenas uma vez”, e que torna Sing Street um filme tão especial. Trata-se não de guardar a música como recurso dramático para potencializar as emoções de um momento já significativo por inúmeros outros motivos, mas de reconhecer a canção como força em si mesma, de incorporar a música à vida e fazer com que a primeira ressignique a segunda e não o contrário. Nesse sentido, mais que meros acessórios, os números musicais que permeiam todo o filme são fundamentais. Eles funcionam ao mesmo tempo como narrativa paralela à história contada pelos diálogos e como momentos autônomos de suspensão dramática, no melhor estilo dos musicais da era clássica do cinema hollywoodiano.

A dança, porém, parceira frequente da música nos grandes filmes musicais de outrora, não dá as caras em Sing Street – à exceção de uma cena, mas ainda assim dentro de um contexto específico. Aqui, o zeitgeist anos 1980 propõe outra parceria, cuja primeira aparição em um diálogo entre o personagem protagonista, Conor “Cosmo” Lalor, e os irmãos parece um tanto forçada, mas que rapidamente se naturaliza com o decorrer do filme: o videoclipe. Além de oferecerem algumas ótimas soluções narrativas, as aventuras videográficas dos adolescentes dotam o filme de um caráter híbrido no que respeita às imagens. Os vídeos produzidos por eles marcam momentos essenciais da trama e permitem ao cineasta brincar com uma imagem mais livre, lembrando em muitos aspectos a câmera na mão usada recorrentemente em “Apenas Uma Vez”. Enquanto o videoclipe de Riddle Of The Model, o primeiro da banda, traz um humor bem dosado entre o ingênuo e o escrachado; o posterior A Beautiful Sea proporciona algumas das imagens mais bonitas do filme, dentre elas um plano extremamente sensível da garota amada, capturados não pela narração oficial, mas pelos próprios garotos que compõem a banda – aqueles que estão ali narrando a sua própria história. É durante a produção desse vídeo que somos apresentados também a um elemento que será essencial no trecho final do filme: o mar – e, sejam planejadas ou não, fãs de Vertigo e Amarcord, preparem-se para fazer felizes associações.

A adolescência é certamente um dos temas mais retratados no cinema e também um dos mais difíceis de se acertar a tonalidade. São muitos os dramas e conflitos desse período da vida; é preciso não ignorá-los ou subestimá-los. É preciso dar-lhes relevo. É igualmente necessário, porém, não se deixar afundar irremediavelmente neles – não cair na sisudez, na sobriedade excessiva ou, ainda pior, na desesperança. John Hughes sabia o que fazia ao desenvolver a brilhante cena de diálogo em “Clube dos Cinco” na qual os protagonistas revelam os motivos que levaram cada um deles à detenção. Mas ele também sabia muito bem o que fazia ao levar a pesada confissão de uma tentativa de suicídio a descambar para o riso e cortar a cena logo em seguida para uma animada sequência de dança. Sing Street compartilha desse misto de “é preciso levar a sério; mas é bom não levar tão a sério” que os bons filmes sobre adolescência têm.

Vem do próprio filme, no entanto, a expressão que melhor sintetiza a sensação que persiste com o espectador após assistir à subida dos créditos. Intencionalmente ofuscada pela trama da banda e da garota, a relação de Conor com o irmão mais velho, Brendan, um quase guru espiritual cujos livros sagrados são discos, é fundamental e encontra sua relevância justamente na sutileza com que é composta – no fim, descobrimos que o filme é dedicado “a todos os irmãos” (for brothers everywhere). É Brendan quem alimenta Conor de referências, musicais e de vida. E, enfim, é ele quem fornece o substrato que permite ao protagonista forjar o termo-síntese não apenas do filme, mas de toda a complexidade de amadurecer: happy-sad (em uma desastrada e literal tradução, “feliz-triste”). Explicar o significado parece desnecessário, mas assumo aqui o papel do Brendan e ofereço uma dica: você vai querer escutar de novo – ou, se tiver sorte, pela primeira vez – The Cure, The Head on The Door.

Sing Street ainda não estreou no Brasil, mas fiquem de olho; é um filme que vale muito a pena ver no cinema!