Por Álvaro André Zeini Cruz
É noite de Natal quando a pequena Tootie (Margaret O’Brian) irrompe aos prantos pelo quintal e destrói a família de bonecos de neve ali modelada. Esther (Judy Garland) aparece logo em seguida para socorrer a irmã. Para além da cena, há outra, extra-diegética, pessoal e memorativa: na sala de aula do curso de pós-graduação em roteiro da FAAP, o prof. Máximo Barro, decepcionado diante do riso dos alunos, ralhava: “estão rindo de uma criança que mata simbolicamente a própria família! É uma tragédia! Uma tragédia”. Estávamos, de fato, rindo de uma tragédia, que, entretanto, não se completava pela cena vista isoladamente. Era preciso o visionamento do que a precedia. Era preciso ver Agora Seremos Felizes por inteiro.
Era preciso conhecer os Smith e a casa em que todos experimentam o tempero da sopa em preparo. Era preciso ver Tootie calçar os sapatos do pai e apresentar essa casa por meio do jogral – continuado pelo avô e pelas irmãs – que cantarolava as maravilhas de se viver naquela cidadezinha (Meet me in St. Louis, Louis, Meet me at the fair, Don’t tell me the lights are shining any place but there). Era preciso uma diva histórica do cinema como Judy Garland celebrar a bordo de um bonde a experiência do amor naquele lugar especial. Era preciso assistir à família e seus contorcionismos em torno da mesa – dilatados nas possibilidades complexas da mise en scène clássica – para esconder do patriarca o telefonema interurbano que a primogênita receberia de um pretendente. Era preciso conhecer uma América de outrora, não apenas resgatada, mas elevada do ordinário ao maravilhoso pela arte especialista em tais feitiçarias – o cinema.
Esse alinhamento mágico é sintetizado na cena mais estranha ao resto do filme. É Halloween e Tootie, a caçula entre a criançada, é desafiada pelos outros a atacar com farinha um vizinho ranzinza. Vincente Minnelli, então, executa um dos mais potentes movimentos de câmera que me vem à memória: com o saco de farinha nas mãos, Tootie parte acompanhada pelo travelling out, deixando as outras crianças, em torno de uma fogueira, para trás. Desfocadas na profundidade, elas observam a menor por um instante, mas logo voltam à algazarra. A garotinha continua em passos firmes, acompanhada da mesma forma pelo movimento de câmera, que, porém, capta um mundo em transformação, seja pelo farfalhar das folhas, pela ação do vendaval, pela diluição da luz. Um espaço que, durante a caminhada, vai se tornando cada vez mais inóspito e assustador.
Enquanto avança, Tootie despe a face dos óculos e do nariz falso que compõem a fantasia, deixando livre o olhar cada vez mais amedrontado, mas ainda assim implacável. A trilha sonora mixa as delícias das peripécias infantis aos assombros genuínos que a infância sustenta tão bem. Tootie vai do faz-de-conta ao verdadeiro, da brincadeira ao horror. O olhar dela arregala conforme se aproxima de algo no extra-quadro; a jornada percorrida, no entanto, é importante o suficiente para dilatar a revelação do contracampo – a aterradora casa dos Braukoff. Pois para Minelli, não importa a chegada, a conclusão, o fim, mas os meios, as jornadas, as vivências ímpares que só um lugar como St. Louis é capaz de proporcionar. Ao filmar a travessia dessa rua na continuidade do movimento de câmera, o cineasta circunscreve no plano não só a singularidade de um lugar, mas a magia do tempo da infância e de uma outra América, emulados na tela através de uma construção que busca aproximar a ilusão da completude da experiência genuína. Se a angústia de uma vida é o combustível do célebre travelling in realizado por Douglas Sirk em Tudo o que o céu permite, a operação de Minnelli é inversa: a beleza dos momentos mais prosaicos servem de força motriz para despertar a câmera.
A cena arquiteta como nenhuma outra esse lugar em que as aventuras – infantis ou adultas, do brincar ou do amar – se completam, esse mundo capaz de se desdobrar em tantos outros. Justifica, assim, a revolta de Tootie com a possibilidade da família ter que deixar St. Louis por conta do trabalho do pai, ou seja, pelo mundo adulto, masculino e pragmático que tenta se contrapor àquele lar especial. Tão infeliz quanto Tootie está Esther, que encontrara o amor entre os rodopios do baile em volta da árvore na noite de Natal. Sua insatisfação, porém, é moderada pela maturidade, e a reação da mais velha é a de proteger a criança. Entra, então, a canção emblemática, Have Yourself a Merry Little Christmas, cuja letra promete que no próximo ano os problemas serão menores. Compromisso traído pelo olhar ressentido de Garland, que faz com que Tootie flagre a mentira – nenhum Natal será como antes, pois os tempos que se aproximam – e que Esther parece vislumbrar pela janela – são outros. Tempos de magias pequenas, e, portanto, de Natais ainda menores.
A melodia entoada por Garland se distorce na camada instrumental enquanto Tootie dispara para decepar a família lapidada em gelo. Uma tragédia, como bem disse o professor Máximo. A violência dos golpes e o choro atraem o pai, que, da janela, vê o abraço sofrido das filhas. Angustiado, ele desce para a sala, saca um cigarro, mas interrompe o ato de acendê-lo – seu olhar, sublinhado pela aproximação do travelling, titubeia ao perder-se pela casa no extraquadro, pela unicidade do lar que se confunde com aqueles que nele vivem. Os acordes da canção voltam, agora emocionais como nunca; numa epifania, o pai levanta-se num pulo, para, aos berros convocar a família e comunicar que não mais deixarão St. Louis, esse lugar mágico que transforma em especial os dramas, as relações, as vidas mais simplórias. Diferente do que talvez esperasse Esther, o milagre natalino não vem do céu, mas de dentro do lar, das empatias e dos laços afetivos raros, mas que se mantêm tão bem em St. Louis. Cidade que faz com que histórias comuns se modulem em ritmos, se torçam em dramas, comédias ou tragédias, se unam por meio das vozes e dos olhares. Cidade que ocupada pela mesma alma daquele que a registra – o próprio cinema.