Por Liene Saddi
“Naquele tempo eu não acreditava em Deus nem em Papai Noel, mas acreditava em sereias. Elas me pareciam tão possíveis quanto os cavalos-marinhos que eu via no aquário. […] Você me leva para ver o filme da Pequena Sereia no cinema que fica na esquina de casa. E nesse dia você volta a brincar comigo de encenar, e a gente volta pra casa cantando, e sentindo que nem ela, embaixo d’água, sonhando em trocar de pele. Depois você lê pra mim a história original, em que ela sofre pra se tornar mulher, perde a voz e morre. ‘Como assim ela morre?’, eu te pergunto. Me sinto enganada, peço pra dormir com você”.
(Petra Costa, “Elena”, 2013)
Conheci Elena em 2015, e achei que jamais tomaria coragem pra falar dela. De Petra. Arranhada aqui e ali em momentos pontuais acadêmicos e conversas informais, transportar suas mobilizações internas para qualquer tipo de lógica ou verbalização ordenada – e sem cair na ordem do desabafo pessoal – parecia uma missão de difícil execução. E assim a deixei de lado, guardada numa gaveta, a cada texto, a cada palavra. Arquivei-a, temporariamente, na carne.
Mas 2016 passou, nesse turbilhão de emoções e emaranhados locais e globais, de intensas conquistas e de graves retrocessos, trazendo coletivamente uma dificuldade implacável na formação de uma opinião lúcida sobre qualquer assunto. A produção fílmica autoral deste ano (assim como as demais formas de expressão artística humana) naturalmente nos arremessou de volta, em vários momentos, uma produção no limiar do senso de potência e de impotência, com os pés cravados na corda bamba entre a esperança e o desilusionamento em relação a uma série de elementos do presente gritante.
Arriscaria dizer que foi um ano de revisitações e reescritas da memória. De “Aquarius”, longa dirigido por Kléber Mendonça Filho, a “Lemonade”, projeto de álbum visual do universo pop concebido por Beyoncé, se reencontrar no presente com o que já foi e atravessar novamente o passado diante de outras perspectivas e lugares de fala foi e vem sendo o exercício de muitos e muitas artistas. Trata-se, afinal, de uma via da memória para além da nostalgia circular, uma vez que arranca pra fora o que foi silenciado pelo tempo, ocultado. Encontra brechas no disco riscado. Uma possibilidade de existência e reverberação das não-histórias que subjazem nas veias e escombros do discurso dominante.
2016 escorreu pelos dedos, e Elena, ao fim do ano, me sussurrou de dentro da gaveta, do fundo da carne. Me tranquilizou pois, tal qual como sereia, não queria destruir, não queria gritar (por mais que às vezes precisasse), não queria matar, só queria estar em troca com quem diante dela se encontrasse. Me lembrou que Iemanjá, protetora da vida dos mares, é a figura da criação, é força criativa, e que a transmutação da sereia em figura sedutora e destrutiva pertence à alçada da cultura europeia – reflexo da desconexão com a natureza e da dificuldade em se lidar com os aspectos para além da racionalização da potência masculina, que hoje assola todos os gêneros.
Elena, que como a sereia, como Ofélia, tantas vezes pelos séculos e entre fronteiras já havia sido silenciada, agora era Petra, e só pedia licença pra criar, dançar, cantar. Sobreviver. Como filme-ilha entre o documental, o poético e o ensaio, não tinha pretensões grandiosas de subversão ou reinvenção do discurso narrativo (não queria sequer resolver seu próprio discurso). Não almejava um impecável, brilhante ou certeiro exercício técnico. Estava cheia de dúvidas. Mas não podia se arriscar em perder a voz de novo nas dobras da história, e esta forma-relato intuitiva acabou sendo o meio encontrado pra poder se expressar: a integração entre o recolhimento (o vazio, o buraco), o discurso (a procura do verbalizável) e o corpo (a dança e o gesto).
A problemática da aceitação e validação social em relação ao melancólico-buraco é elucidada por Márcia Tiburi em “Filosofia Cinza”: “nas mulheres ele é a perturbadora marca anatômica que, durante séculos, determinou o gênero feminino. Se Sócrates conversa entre homens e realiza a maiêutica [parto das ideias] como suposta vantagem sobre o parto feminino, Walter Benjamin, prestando atenção ao lugar ocupado pelas mulheres e o feminino, perguntará pela conversa das mulheres, da qual só podemos conhecer o silêncio. É nesse ponto que estará evidente a bipartição de dois paradigmas filosóficos, o que se determina pelo diálogo masculino (o discurso fálico do logos) e o diálogo feminino (o discurso oco ou plasmado no silêncio)” (TIBURI, 2004, p. 94).
Neste sentido, Petra nos traz um difícil desafio, este de ouvir o silêncio retumbante. Sua locução doce é apenas casca fina pra nos levar aos recônditos de seu buraco, de nosso buraco. Sua voz eventualmente se fragiliza, e a expõe em suas falhas. Mas justamente por isso ela se destaca, na sua incompletude, da miríade de tantas obras, pois anuncia declaradamente o buraco e a impossibilidade de se comunicar plenamente, a impossibilidade da transcendência. Por outro lado, apresenta a possibilidade de reconciliação com o feminino e seu buraco. Em tantos outros casos, é difícil até mesmo saber o que foi silenciado em prol da hegemonia do discurso e da forma.
Um cuidado similar ao de Petra é encontrado através de outros diretores, em algumas das obras lançadas este ano: em “A Chegada”, de Denis Villeneuve, a sereia melancólica é encarnada por Amy Adams, pesquisadora e linguista que só encontra na dobra do espaço e do tempo uma maneira de ser ouvida (na nossa realidade cotidiana, o simbólico que ela abarca ainda passa, sem sombra de dúvidas, ignorado). No já mencionado “Lemonade”, Beyoncé revisita, nos arranhões da sua história familiar afetiva, a história e a luta da mulher negra norte-americana. É também melancolia, está intensamente fragilizada, e usa o canto e gestos potentes, sua própria ancestralidade e das mulheres que com ela contracenam, pra poder seguir em frente. Em “Julieta”, de Almodóvar, o diretor nos apresenta uma protagonista que nos devora por dentro, retrato de gerações sucessivas de mulheres que, na incomunicabilidade profunda, oscilam entre depressões e as incompreendidas explosões por quem as observa de fora e não conhece sua dor.
Cada uma à sua maneira, são todas obras-ilha, se estivermos dispostos a nadar até elas e por lá ficar um tempo. Há também, por outro lado, os casos em que a nostalgia travestida nos põe à prova. Na terceira temporada de Black Mirror, o final do episódio de San Junipero – que estranhamente pareceu mais leve aos olhos de muitos espectadores – nos traz na entrelinha uma outra ordem de violência velada: a de que ainda há um desejo profundo pela fuga do real para a suspensão do tempo em momentos cíclicos e ininterruptos: o felizes para sempre em nuvem. A trilha sonora euforicamente agressiva apresentando uma consciência post-mortem idílica, com um reencontro entrecortado ao longo dos créditos, chega a assumir um tom macabro. E com os sentidos preenchidos, com toda a claridade das externas (o paraíso?), uma música vibrante e um reencontro para o qual louvável- e dignamente se torcia (a redenção para a falta de aceitação que uma das personagens teve por conta de sua orientação sexual, que se desdobrou na imobilização por uma vida inteira), nos distraímos e não percebemos que o silêncio da indústria que arquivava essas consciências nos foi retirado. Não apenas o silêncio sonoro (pois a música também é um elemento que acompanha Petra), mas figurado. Não tivemos respiros pra perceber o que aquelas personagens e aqueles espaços utópicos queriam de fato nos dizer, qual era o tamanho de seus vazios na percepção da impossibilidade de apreender o tempo que corre no real.
Petra precisou fazer poesia com o calendário, estar inteiramente em cada momento, reencenar alguns deles, conversar com muita gente, pra poder ter um mínimo vislumbre do que eram lembranças reais, do que eram projeções inventadas, e estar ciente de que a memória, limitada, deixou muita coisa se perder. Externalizou, assim, sua dor e a busca de seu vir-a-ser, abrindo espaço pra que tantas pudessem fazer o mesmo. E pra isso, precisou falar. Por um filme inteiro, falar, verbalizar o tamanho de seu silêncio.
Como Petra criança, não acredito em muita coisa, mas acredito nas sereias, e que nessa categoria de seres do mar está todo mundo que não coube na barca viril de Ulisses, assim como nas barcas do colonialismo, do neocolonialismo e do economicismo (ou foi obrigado a entrar nas barcas contra sua vontade). Acredito que elas tenham muito a nos dizer, e que só teremos um mundo mais tolerante quando de fato as deixarmos falar. Sereias crianças, sereias idosas, sereias adolescentes, sereias meninas, sereias meninos, sereias em transição de gênero, sereias de diferentes orientações sexuais, sereias indígenas, sereias periféricas, sereias imigrantes, sereias ativistas ambientais, sereias enfrentando com resiliência um cotidiano racista, intolerante de desigualdades sociais, sereias professores, sereias com necessidades especiais. Sereias que são peixes fora d’água do senso de ordem vigente, encolhidas e encolhidos por ainda não terem encontrado um lugar pra exercer sua sensibilidade. Sereias que não são humanas, quando a natureza dá seus próprios sinais de esgotamento.
Em seu último ano de vida, Eduardo Coutinho em entrevista a Carlos Nader comentou que sua maior dificuldade no exercício do ofício de documentarista era o de se esvaziar para se colocar diante do outro. Em suas palavras, sabia que jamais seria mulher, jamais iria parir, jamais seria negro, jamais seria peão. Podemos fazer a leitura de que se sabia pescador, e que jamais seria sereia. Sabia que a voz do outro só caberia dentro do seu buraco. O que ele procurou fazer, em toda a sua obra, delicadamente, era algum tipo de ponte: mergulhar junto com elas (o som reverbera mais rápido dentro d’água), ao invés de arrastá-las pra beira da praia. O mesmo, acredito, vale para os realizadores de ficção e de qualquer outra forma de expressão, além dos críticos, espectadores, curadores: antes de validarmos ou desvalidarmos algo, abraçarmos ou soltarmos histórias, precisamos prestar com muita atenção e muito cuidado de onde estamos ouvindo (e se estamos realmente ouvindo), e de onde nos falam, antes de tecermos comentários.
2016 passou e as barcas continuam passando e atropelando, mas com certeza agora elas estão encontrando muitos novos jeitos de cantar.