Por Karin Silva
Em tempos “crepusculares”, ambientar uma história de vampiro onde o glitter do personagem não reflita nos olhos do espectador pode ser tarefa provocativa ao diretor cinematográfico. E aqui se destaca o sueco Tomas Alfredson que, com suas habilidades técnicas cinematográficas exuberantes, fez o aplaudido “Deixa ela entrar” (Låt Den Rätte Komma In, 2008). O filme conta a história de Oskar, um menino que sofre bullying na escola e desconta sua vontade de vingança colecionando recortes de jornal de assassinatos. Oskar conhece a estranha Eli e criam uma relação de amizade e amor fora dos padrões. A relação se intensifica quando o menino descobre que Eli é uma vampira, fato que, ao invés de afastá-los, os aproxima.
Com essa rápida sinopse pode-se até esperar uma narrativa adolescente de romance água com açúcar, mas o diferencial aqui é a maneira como o assunto é tratado, não só com uma narrativa madura, mas com os componentes visuais e o direcionamento que traz a visão de Alfredson, calcada em marcadores potentes como formas geométricas, as linhas e as cores usadas de modo singular.
Cubos e quadrados. São essas as formas que encaminham a motivação estética do filme, observadas nas arquiteturas e nos objetos de cena, como o cubo mágico, brinquedo que Oskar empresta a Eli e que, em uma interpretação mais subjetiva, pode representar a forma total do filme: um cubo contém seis faces, e em cada uma há nove quadrados, que por sua vez possuem cores aleatórias podendo ou não compor uma cor homogênea. É como se todo o longa nos indicasse que há mais coisas acontecendo para além da vista. Ou seja, o cubo pelo filme e as faces pelos fatos. Assim, nós, observadores, podemos procurar “montar” nosso próprio cubo mágico a partir das lacunas dessa narrativa. Se pensarmos nessa afirmação, teríamos uma explicação do porquê do excesso de sugestões e da ausência de explicações concretas, como o passado de Eli, a relação de Oskar com seus pais, o motivo da separação dos mesmos, etc. Em nada prejudica a narrativa a ausência dessas informações.
Dentro dessa forma, é nítida a presença das linhas com objetivo dramático, que observamos em todo o decorrer do filme. Essas linhas são bem delineadas em cenas onde as massas podem vir a ser difundidas ou veladas – causando uma certa angústia na busca de identificação dos corpos na cena – assim como as ações propriamente projetadas, que não tiveram motivações reveladas até esse momento, como, por exemplo, do personagem que drena sangue das pessoas.
Como visto, o diretor sueco se preocupa em nos inserir nessas ações como observadores cúmplices, mas distantes; assim, nosso olhar dança em meio às paisagens procurando as possíveis ações futuras. Mesmo que dessas linhas surja um efeito claustrofóbico, elas ainda participam de todo o mistério contido na composição estética do quadro, que nos fazem perseguir cada detalhe em longos planos dessa arquitetura geométrica. O mesmo poder-se-ia dizer sobre ambiguidade dessas linhas lacunares que ora nos aproximam e ora nos distanciam do enredo – somos atraídos mas a superfície é sempre uma presença de impacto; não podemos nos afogar na narrativa, no estranho, somos apenas observadores.
As cores complementam as composições, com um aspecto mais lavado. Vemos um filme onde a frieza é predominante, enquanto as cores quentes são inseridas com menor frequência – geralmente colocados apenas nas passagens pessoais de Oskar -, embora o vermelho se torne uma indicação interessante. Além de representar a relação amorosa entre Oskar e Eli e também o sangue, o vermelho está presente nos figurinos dos personagens que a vampira mata. Veja bem, que ela mata e não que ela morde, pois a última vítima não tinha vermelho à vista; o filme indica que ela fora poupada, pois ouvimos os gemidos da vítima enquanto o casal se abraça. Abraço que parece ser o motivo da explicação do fim do filme, onde nos é indiciado que Oskar e Eli, por estarem inseridos sozinhos em uma viagem de trem, estão a fugir.
Sim, Oskar também carrega o vermelho, mas cabe aqui o destaque: quando está na casa de seu pai, o corpo de Oskar se movimenta para vestir o vermelho – uma forma de afirmar que o menino entrou definitivamente para a vida de Eli – e provavelmente tomará lugar do outro homem que cuidava da vampira, matando as pessoas para que ela pudesse se alimentar sem ser descoberta.
Alfredson foi sutil nas escolhas dos movimentos, alternados entre bidimensional e tridimensional, mas com uma leve preferência para os tilts e panorâmicas. Quando busca um detalhe (lembremos nos planos das facas), opta pela câmera acompanhando o movimento do personagem, sem dar um corte, fazendo da cena algo mais próximo e dilatado para o espectador. São esses movimentos curtos, com velocidade lenta, que dão o clima do filme e sustentação ao suspense.
Outra preferência do diretor são os espaços profundos, propícios à encenação no background potencializada pela brincadeira com o foque e desfoque. São momentos que, geralmente, demandam uma atenção maior do olhar – podendo chegar a um certo desconforto pelo não condicionamento de exposição dos fatos – devido à complexidade da ação em cena. Um exemplo está no frame abaixo, onde a ânsia do espectador está voltada para o possível afogamento de Oskar enquanto há uma outra ação captada por um ponto de vista incomum e, por isso mesmo, provocador, tal qual o filme.
O filme de Tomas Alfredson teve seu remake em 2010 dirigido por Matt Reeves e intitulado “Deixe-me entrar” mas com sucesso moderado perante seu antecessor. Vale lembrar que o romance do sueco John Ajvide Lindqvist foi a obra que serviu de base para os filmes.