Carrie e a via-crucis do corpo

Por Juliana Maués

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Um casal em cena. A câmera o captura em contra-plongée. O plano é próximo o bastante para ouvirmos as palavras que são trocadas de modo intimista entre os dois. Acima deles, estrelas e luzes multicolores despontam – ainda que estas provenientes de lâmpadas coloridas e aquelas feitas de papel laminado. Eles dançam e giram. A câmera faz o mesmo, em sentido inverso. A priori, lenta, acelera aos poucos e logo os ultrapassa em velocidade – funciona então como um redemoinho propulsor: é como se os erguesse. Eles chegam ao céu. Eis como Brian De Palma filma um dos únicos momentos de transcendência, momento da alma, num filme que é quase todo corpo. Se Carrie (1976) pode ser dito maneirista no estilo, no conflito central, ao opor essas duas dimensões da condição humana, é essencialmente barroco.

O plano em questão tem lugar durante a longa sequência do baile, ainda antes do banho de sangue, antes do anúncio do rei e da rainha, antes mesmo da votação. Parece seguro dizer que é a primeira vez que Carrie (Sissy Spacek) tem acesso ao corpo de outra pessoa e, ainda mais importante, permite acesso ao seu. Apesar disso, entretanto, é um momento em que o físico fica em segundo plano, enquanto a composição como um todo aponta rumo ao etéreo: o corpo sendo meio para se ir além, o imanente guiando o transcendente, o físico funcionando como veículo para o espírito. É a descrição simples do sublime, esse momento de êxtase que implica na saída do próprio envoltório físico rumo ao contato com o que há de mais puro em nossa essência – o que as religiões chamam Deus.

O contraste absoluto se estabelece nas cenas protagonizadas por Margaret White (Piper Laurie). Ironicamente sempre vestida em preto, a mãe de Carrie pesa em todos os aspectos: na sua aparência majoritariamente triangular que parece enraizá-la no chão; na sua oratória e no gestual excessivamente teatrais que adensam qualquer ambiente em que ela se faça presente; no discurso, que embora almeje o sublime, prende-se sempre à carne, à cruz como representação máxima da dor física, à salvação por meio do sangue de Cristo; na iluminação expressionista que a acompanha, especialmente na casa onde residem mãe e filha, que parece ter vindo, juntamente com Margaret, de algum romance gótico sulista e aterrisado no improvável cenário de um filme high school. O caminho pregado por ela não é senão o oposto daquele de Carrie em sua dança: trata-se de chegar aos céus não por meio da superação do corpo, mas da sua mortificação.

Por meio da mortificação do próprio corpo, Margaret almeja manter o de Carrie imaculado – no que se revela que por mais bruto e desajeitado que seja este amor maternal, ele, sim, existe. O ponto de partida do filme marca o momento em que o projeto, desde sempre uma delusão, falha. A construção metafórica é clara ao ponto de ter sua força, erroneamente, subestimada. O vapor que sai da ducha quente no vestiário feminino de uma escola serve como cortina que oferece um monocromatismo branco à cena. Garotas seminuas conversam e desfilam protegidas por este véu enquanto somos conduzidos a um dos chuveiros. Ali, planos próximos adicionam mais camadas de branco: a palidez da pele desnuda, os azulejos da parede, o sabonete que desliza pelo corpo. É Carrie. À sensação de paz imperturbável, contribuem ainda o slow motion e a trilha sonora deveras acertada. O sublime se apresenta, e logo se despede. Traços vermelhos interrompem o monocromatismo. É sangue – e não qualquer um. Os fios que escorrem dentre as pernas denunciam o sangue menstrual.

A primeira menstruação é indubitavelmente um marco. É muito fácil, todavia, vê-lo de modo simplista, como literal divisor de águas de uma vida que se reparte entre menina e mulher, inocência e pecado. O difícil é não fazer isso. Em Valerie e a Semana das Maravilhas (Valerie and her week of wonders, Jaromil Jires, 1970), por exemplo, a fuga da armadilha está no fantástico. Em Carrie, está em caminhar rumo a ela, mesmo que sem intenção – o que torna a garota uma personagem essencialmente trágica. Para Margaret, a filha, uma vez marcada pela maldição do pecado original, não possui mais salvação que não envolva renegar e ferir o próprio corpo – é preciso machucá-lo e afastá-lo dos outros, não deixar que o sintam, não dar-lhe o prazer do toque, fazer-se fortaleza em si mesma. Não à toa, o poder paranormal que se manifesta a partir de Carrie é aquele que mais implica o relacionamento à distância: telecinese. À medida, todavia, que a garota naturaliza o próprio desenvolvimento e a relação com os demais, o corpo relaxa e a paranormalidade parece adormecida perante os apelos de uma vida comum. Está como deve ser. Porém, mais uma vez, o sangue irrompe.

Dessa vez, é o sangue de porco despejado sobre Carrie por uma colega de classe numa sede de vingança adolescente – ato cruel, mas ainda assim banal, porém suficiente para fazer ressurgir as palavras da mãe. Um truque de edição e Carrie está não apenas inteira vermelha (“devia ter adivinhado que seria vermelho”, diz Margaret ao ver o vestido cor-de-rosa com que a filha sai para o baile) como sua imagem, tomada pelo líquido viscoso que lhe escorre, adquire o peso típico à mãe. É então que De Palma faz sua cena assinatura: onze minutos corridos de tensão, diálogos suspensos, ritmo primoroso e, claro, split screen. Carrie deixa de ser a mulher marcada pelo sangue, para tornar-se a marca de sangue em si – transmuta-se de pessoa em força da natureza; é toda carne, pecado. Nesse sentido, a opção por uma interpretação semi-catatônica, com os músculos tesos de um Nosferatu e o proveitoso arregalar dos olhos já espantosos de Sissy Spacek contribuem mais para o sobrenatural da cena do que os efeitos da paranormalidade em si.

Está feito. Carrie nunca mais será a mesma. Exceto que ela volta para casa e, aparentemente, o é. Entra na banheira, esforça-se por lavar o sangue e, inocente do que fizera quando em transe, procura nos braços da mãe o consolo para a peça que lhe fora pregada. Encontra, porém, Margaret disposta a realizar o que ela acredita ser o sacrifício final do corpo em prol da salvação da alma. Logo após ser alvejada por uma facada nas costas, Carrie oferece à mãe a salvação pelo único modo em que esta parece concebê-la, pelo martírio da carne – e a transforma, assim, no próprio Cristo. Direcionadas pela filha, cada uma das lâminas que perfuram Margaret é recebida por esta com um misto de grito e gemido que mal disfarça o gozo. Quanto a si mesma, Carrie concebe que não há mais muito o que fazer. Enquanto a casa se desmancha em chamas, ela arrasta o corpo da mãe para o apertado quarto de oração em que costumava pagar penitência. Recusado o seu sublime, negada a sua inocência e sendo ela mesma o próprio pecado, parece não haver mais como salvar-se. Carrie esquece a alma e abraça o físico, mas, diferente da mãe, sem redenção. Carrie White queima no inferno.