Aquarius

Por Álvaro André Zeini Cruz

captura-de-tela-2016-12-23-as-14-37-02

Poucos viram Aquarius. É óbvio que essa colocação inicial – que, assumo, beira a insolência – não diz respeito à bilheteria do filme. Concerne, entretanto, à crítica, que muito orbitou, mas pouco mergulhou na complexidade deste longa de Kleber Mendonça Filho. Reitero que ao escrever essas e as próximas linhas, corro o risco da arrogância – e me desculpo de antemão –, mas haverá nelas uma tentativa de imersão para além do protesto em Cannes, para além do boicote do Minc, para além da discussão entre direita ou esquerda, muito embora – é bom destacar – este seja sim um filme político. Chega de crawl. Aquarius é um filme para ser nadado de peito.

Aquarius tateia a política em sua etimologia – politikos (cívico), polites (cidadão) e polis, (cidade). Essa tríade está em um dos planos mais impactantes do filme: Clara (Sonia Braga) caminha pela praia com o sobrinho e a namorada.  Conversam sobre o esgoto que separa Pina, bairro nobre de Recife, do subúrbio que é Brasília Teimosa, para onde rumam comemorar o aniversário da empregada, Ladjane. Clara, então, comenta sobre a morte do filho de Ladjane por conta de um atropelamento, ocorrência ainda impune. O sobrinho demonstra indignação e Clara o acaricia nas costas; o gesto dela carrega conforto e uma espécie de orgulho. O corte traz o plongée, que através da panorâmica e do zoom out, sai violentamente da observação dessa caminhada para reenquadrar aqueles dois mundos, que na verdade são um só: o arranha-céu espelhado que corta o quadro e as inúmeras construções do subúrbio, que se desdobram na profundidade.

Estão ali três cidadãos discutindo sobre um déficit ligado à esfera do cívico. Entre eles está Clara, figura lapidada com uma rara potência, hipnótica da voz empostada aos cabelos longos e negros, que Mendonça filma revelando uma iconografia envolta na atriz desde Gabriela. Ao longo do filme, ela costuma monopolizar o olhar da câmera, mas aqui é despejada do quadro; não sem antes ser reduzida, lembrada de que é pouco, quase nada, diante dessas construções paradoxais que simultaneamente ocultam e revelam poderes.

Clara é um resquício da cordialidade em meio a esse mundo predatório, cuja força está entranhada dos corredores dos escritórios às vielas dos subúrbios, em poderes lícitos ou paralelos. Ela se recusa a vender seu apartamento – e as lembranças que o habitam –, e, consequentemente, trava a demolição do edifício que dá nome ao filme. É uma resistente, considerando que esse tipo de apego ao passado não cabe mais a um tempo em que os espaços devem servir ao agora. Sua presença, rara, estabelece conexões iguais; mensagens na garrafa – como ela mesma metaforiza –, encontradas por aqueles que conseguem enxergar, como a fotógrafa que, durante uma entrevista, vê e ouve melhor do que a própria entrevistadora.

O revigoramento da obstinação deve ser um exercício constante nesse mundo hostil. Fora do lar não há segurança; a ameaça, crescente e silenciosa, aparece em corpos aparentemente inofensivos, seja no arquiteto da construtora (Humberto Carrão) ou no filho de um antigo vizinho, que pressiona para que Clara venda o apartamento. Tirar o carro da garagem ou tomar uma água de coco na calçada tornam-se atividades de risco. O perigo, às vezes, penetra a casa, como na cena em que a filha cerca a mãe para que a transação se concretize. Cena reveladora, aliás: mãe e filha se espezinham pouco a pouco; a filha, Ana Paula (Maeve Jinkings), cutuca uma ferida guardada justamente naquilo que Clara mais preza – o passado. O ressentimento da filha faz vir à tona o abandono materno. O irmão, então, vai à estante e apanha o livro da mãe com dedicatória aos filhos, como se esse legado curasse a ausência. Não cura.

Se há um egoísmo em Clara, não é para com os vizinhos, que dependem dela para receberem por seus apartamentos (como apontado em alguns textos), mas para com essa filha, que o retribui da mesma forma. Afinal, a importância do livro não desaparece com as cicatrizes, rachaduras que antecipam todas as outras. Os vestígios do passado interferem no futuro. Ela própria carrega marcas, como a da mama retirada, ou o próprio cabelo, símbolo da sobrevivência ao câncer. Pode até ser a heroína da história, mas, assim como o filme, não é rasa. Demanda fôlego para se revelar em sua profundidade.

Diante do caricatural dos demais personagens – sintoma do mundo em que vivem –, Clara se adensa em suas contradições. Ela vai ao aniversário de Ladjane, onde o filho morto da empregada é homenageado. Trata a doméstica como amiga. Mas, noutro dia, quando a família reunida vê fotos antigas, se incomoda com uma intervenção inesperada: Ladjane, sentindo-se integrada, invade o plano conjunto da família e reduzida a um semi-corpo, sem pés nem cabeça, mostra a foto do filho morto, causando o constrangimento geral. Não há close, não há o olhar de Ladjane, somente os olhares desconcertados dos patrões.

O silêncio é rompido pelo disco colocado na vitrola pela namorada do sobrinho. Os versos de “Pai e Mãe” ressoam, enquanto Clara e a garota estabelecem um das raras conexões reais do filme ao se encararem com os olhos lacrimejantes. Compreendem a afinidade que têm e a raridade que é conseguirem enxergar uma a outra neste tempo, neste mundo. Talvez compreendam a dor de Ladjane. Mas não a encaram, pois, como revela o corte, Ladjane já está de volta à cozinha, cortando carne.

Kleber Mendonça Filho pode até ser um cineasta de esquerda e seu filme pode estar mais à esquerda do que outros. Faz, de fato, um elogio à resistência e uma crítica ao capital insano. Entretanto, circunscrevê-lo sob qualquer simplificação política é incompreendê-lo e injustiçá-lo, pois Aquarius não se interessa pelas bordas, por aquilo que pode pertencer à direita ou à esquerda. É um filme de centro, não politicamente falando, mas espacialmente e temporalmente. Um filme sobre corpos engolidos pela cidade, pelas burocracias, pelas incomunicabilidades e, sobretudo, pelas violências diárias. Sobre o hoje como meio que se articula ou não com o ontem e com o amanhã. Sobre estar no olho do furacão e pouco ver (às vezes, simplesmente, não ver). Talvez, Inácio Araújo tenha sido quem mais se aproximou de defini-lo: é um western. Mas a pistoleira que Sônia Braga interpreta não é mero caubói ou jagunço, é o coronel de outrora tentando manter as posses de suas terras num mundo dominado pela selvageria institucionalizada, representada na trama pelo ramo imobiliário.

Clara pertence à classe média, constantemente apontada como mal retratada pelo cinema nacional. Ela não é nada diante do poderio desses novos coronéis, que mantêm negócios ainda familiares, mas cujos terrenos se estendem por toda a cidade; às vezes, pelo país afora. O particular deles não mais afasta o público;  o devora, engolindo também as instituições, a imprensa, os prestadores de serviço. Atropela, por fim, o privado de Clara, seus vizinhos, seus filhos, seu teto, sua história, seu próprio ser.

Uma tensão contínua e crescente se estabelece. Tensão das perseguições, das discussões, das agressões físicas e psicológicas. Aquarius é um filme sobre esses desgastes diários, que, muitas vezes, desencadeiam assassinatos por causa do trânsito ou por cadeiras em praças de alimentação. É também um filme sobre a preservação da memória em sua completude – com virtudes e defeitos – para que se entenda o ser num momento em que o eu é visto de cima, quase como uma peça, uma marionete. Um filme em que o cidadão está à mercê da pólis, essa estrutura física e financeira que continua a crescer desordenadamente e a dissolver cidadãos. Ou, se necessário, a cuspi-los do quadro.

A ambiguidade de Clara se adensa ao final. Seu desfecho é tão catártico quanto cruel; não tanto para com o outro, mas para com si própria. Na derradeira cena, ela diz que prefere dar um câncer do que ter um novamente. A dúvida é plantada: o ato de resistência permanece ou há agora nela uma violência inédita, sintomática do tempo? A resistência do caubói se dá durante todo o momento em que ele permanece de pé diante do oponente. Mas Clara é cercada pela tromba d’água que se forma em Aquarius. Cindida e sem visibilidade, tomba, atirando a esmo. De opositora passa, talvez, a fazer parte da regra do jogo. Vira mais uma peça das violências nossas de cada dia.