Por Liene Saddi
Terrence Malick, aos 72 anos, parece ter chegado a um tipo de ápice na busca do ‘si mesmo’. Apoiado na Alegoria do Cristão escrita por John Bunyan no século XVII, ele encontra seu material de partida para narrar a saga do peregrino contemporâneo em “Cavaleiro de Copas” (2015): um roteirista de Hollywood em busca de seu devir fundamental, assim como de uma possível salvação através da redenção de seus pecados.
Priorizar uma leitura estritamente teológico-espiritualista, contudo, apenas arranharia a multiplicidade de sub-níveis presentes nesta narrativa. As várias buscas, construídas em cascata na experimentação com a forma ensaística que constitui a montagem desta obra, estão ancoradas estruturalmente na distribuição em capítulos de alguns dos arcanos maiores do Tarot de Marselha. E estas cartas nos revelam, nas possibilidades abertas de interpretação do arcaico simbólico, a perda primordial constituinte de sua subjetividade: a incomunicabilidade com o pai carnal.
Há um século, Freud iniciou os primeiros questionamentos e observações clínicas sobre a conexão entre a perda do pai e as neuroses religiosas ou de nostalgia profunda. O senso de deslocamento, não-pertencimento e até obsessões morais estariam, em certos aspectos, atrelados à desconexão com a figura paterna. Na impossibilidade de amar plenamente o progenitor, direciona-se a outras instâncias um ideal de amor, que, como todo ideal, é palavra abstraída, e não encarnação corporal.
Não à toa, a saga do protagonista Rick, interpretado por Christian Bale, é a todo momento referenciada e reconstruída através do olhar do outro, em especial das mulheres que passam por seu caminho, ora como tentações em promessas de aventuras, ora como portentoras do cuidado e acolhimento maternal, e que se fazem matéria de sua admiração. O deslocamento dos corpos em cena reforça este direcionamento afetivo para o feminino, uma vez que os corpos masculinos, quando se encontram, na maior parte das vezes estão desconectados ou desarmônicos no quadro, seja nos desentendimentos de Rick com o pai e o irmão, na insistência dos produtores de Hollywood que o convidam para algum projeto do qual este não se sente parte, na ausência do terceiro irmão cuja morte nunca foi esclarecida.
São figuras que não conseguem se encarar. Assim, a solidão da cidade das palmeiras e dos anjos caídos carrega também o tamanho da solidão de Rick, desvinculado do pai e impossibilitado de ser pai. É a solidão de um homem que, ciente de sua pequenez, vagueia, muitas vezes em empatia com as misérias do mundo, mas sem a coragem de se aproximar corporalmente delas, de tocá-las. A cidade passa em eterno fluxo, nessa busca desordenada de um homem carregado de culpa.
Os afetos de Rick encontram uma brecha para escoar na lembrança dos gestos das mulheres de sua vida, seja nos cuidados de sua ex-mulher médica para com seus pacientes, seja de um vislumbre de lembrança de uma figura materna praticamente sem rosto, mas munida de uma delicadeza para onde se quer retornar: o ato singelo de uma mão que se apoia em seu braço.
Entre extremos costurados, planos abertos lhe dão espaço suficiente para que ele transite no vazio de sua própria existência; já os mais próximos permitem que este observe atentamente um mundo que não lhe pertence. Ambos, contudo, alinhados ao movimento vertiginoso de quem não consegue ser plenamente, apenas estar. Assim, a direção de fotografia de Emmanuel Lubezki (aqui como em “Árvore da Vida”), sem melindres, atende a uma necessidade conceitual: na vertigem interna de se perceber vivo, é absolutamente impossível que a câmera se detenha sobre o protagonista. No máximo, ela pode arremessá-lo de maneira intermitente para dentro e fora de quadro, para que possamos, de alguma forma, estarmos alinhados a sua absoluta incerteza sobre as escolhas de para onde olhar e como viver.
Mais ainda, os corpos de “Cavaleiro de Copas” estão insistentemente nos cantos, nas bordas, e acima de tudo, próximos às janelas, em uma obsessiva busca pela luz e pela claridade, metáfora maior da redenção almejada. Rick passa boa parte do filme olhando por superfícies vítreas e translúcidas, em uma repetição que assume quase uma função irônica: pelos vidros de seu loft, dos escritórios ou das mansões suntuosas pelas quais transita, ele olha para mundos de mentira mediados pela transparência do vidro. Ele observa a sociedade, neuroticamente, mas nada vê.
É curioso como, ao mesmo tempo, raras sejam as vezes em que vejamos reflexos nestas mediações, caso do pontual momento em que Rick, ao entrar em um restaurante, tem seu rosto brevemente refletido em um notebook com um ultrassom de gravidez aberto. Ou nas lembranças inventadas com a personagem de Natalie Portman e uma filha concebida, um amor impossível e emoldurado pelo espelho. As superfícies, quando refletem, só o fazem de maneira dolorida, para declarar a vida que ele não teve.
Existe um detalhe importante: na parábola introduzida pelo narrador em releitura ao Peregrino de John Bunyan, o príncipe foi tentado por terceiros, que lhe serviram um líquido que o colocou em sono profundo, esquecendo-se de que era o filho do rei e que sua busca real era por uma pérola. A projeção da culpa, assim, passa de terceiros para o próprio peregrino: relembrar quem ele realmente é, mesmo com as tentações que lhe assaltam. Fica claro que sua jornada envolve os aprendizados com as pessoas que cruzaram seu caminho, mas em especial o desejo do perdão para com o pai. A busca da conciliação com as figuras masculinas, e logo, com seu próprio devir, está inundada pelo ideal devoto. E Malick escolhe a dedo a representação de Lázaro ressuscitado feita por Caravaggio, e se apropria do mesmo chiaroscuro para desenhar o arrependimento e entrega do pai, ânsia maior de Rick. É só a partir disto que este peregrino passa a ter controle de onde seguir, abandonando as piscinas artificiais e aceitando a água turva dos mares. É só a partir do momento em que seus corpos se encontram com afeto.
Apesar de não ser uma fábula necessariamente moralista, em um filme com tanta claridade e luminosidade esparramadas, resta a sensação de que Rick ainda precisará lidar com a própria sombra, com a necessidade de se sentir amado. De que ele ainda precisará se colocar frente a frente com o próprio reflexo do espelho, encarnando o tamanho da dor que passou apenas arranhada nas superfícies ao longo da obra. Afinal, seu cuidado de si particular, partindo da relação com a cidade artificial e com a admiração da caridade do outro, poderia ser lido por Foucault como fortemente impregnado pela moral cristã de busca via ética do não-egoísmo. Mas na relação direta com o corpo, fica em aberto uma continuação em que, sem o fardo da culpa e sem a repressão do prazer, esse personagem possa, enfim, trazer à carne a intensa jornada da individuação.
De qualquer maneira, é admirável e digno de respeito esse exercício de um diretor que, ao trazer elementos marcadamente autobiográficos em suas obras mais recentes, e ao se permitir seguir um caminho distinto de sua produção anterior, se coloca humanamente como criador em contínuo processo de revisitação dos elementos de sua cinematografia, sem pretensões de grandiosidade, mas procurando sinceramente uma forma de liberar seus próprios traumas.