Por Álvaro André Zeini Cruz
Dois motivos predominam no apartamento-espaço de Estátua! (idem, Brasil, 2015), de Gabriela Amaral Almeida: a liberdade, ou, mais especificamente, o vôo, tema que surge no texto – a mãe aeromoça, que deixa a filha aprisionada aos cuidados da babá – e impregna o lugar através dos pássaros ornamentais espalhados (as andorinhas em espelho, a galinha na cozinha); e a gaiola, remontada através das linhas e barras presentes em portas, janelas e biombos de um imóvel sobrecarregado pela mobília, apetrechos e objetos de decoração.
Esses corpos viventes circulam assim por um apartamento que é concebido pela diretora de arte Luana Demange como uma espacialização da claustrofobia, tendo que se desvencilhar dos inúmeros corpos inanimados que habitam os cômodos. Esta tarefa, Joana, a garotinha sinistra, realiza com muita facilidade, pois é a dona do território (vide a maneira como surge em cena pela primeira vez ao desvelar-se na profundidade de campo). Já Isabel (Maeve Jinkings), a babá, passa todo o tempo a ser encurralada pelo apartamento-gaiola, vendo se esvair a cada cerceamento um pouco de sua humanidade – perde-se a doçura, o ar maternal (e, adiante, a maternidade literal), a própria sexualidade.
Nesse labirinto cada vez mais restrito para os jogos de estátua, nenhum adereço da arte é tão certeiro quanto os adesivos das árvores fantasmagóricas perpassadas pelos fios elétricos sobre os quais pássaro nenhum ousa pousar. Tais linhas tomam o último dos espaços livres – as paredes brancas, – e completam os obstáculos daquele apartamento-abatedouro, onde jaz um hamster e a vaca em forma de tapete, objetos ocos de espíritos, tal qual será o destino de Isabel.
Este movimento é reverso ao de Quando eu era vivo, cuja arte também é assinada por Demange. No longa de Marco Dutra, o personagem interpretado por Antônio Fagundes adentra a terceira idade obcecado pelo corpo; seu apartamento, onde os halteres e potes de whey protein parecem brotar por entre as quinquilharias, é reflexo espacial dessa neura pelo físico, mas que representa, sobretudo, o temor pela velhice, pela morte. A preocupação o coloca em descompasso na relação com o filho (Marat Descartes), que, sempre apático e desgrenhado, inicia um salto em direção a uma espiritualidade demoníaca libertada dos antigos objetos e bibelôs da mãe, que, se para o pai, representam uma memória que não deve ser mexida (e, por isso, não encontram ressonância), para o filho trazem uma reminiscência inevitável, viva e implacável em sua pulsação.
O desacordo em Quando eu era vivo é entre corpo e espírito – um corpo que repudia a morte e um espírito que a abraça. O lar representa essa dualidade: os aparatos aeróbicos remontam à ideia de movimento, energia, entretanto, incipiente contra aquela da espiritualidade que passa a emanar dos objetos conforme o personagem de Descartes vai dominando o espaço. Há a conversão do apartamento-espaço em apartamento-personagem; não à toa, os adereços e bibelôs passam a ser enquadrados como testemunhas do ritual final, aquele em que “a serpente da noite” oferece a permuta – o corpo em troca do espírito diabólico.
O embate entre corpo e espírito cessa quando as almas do pai e do filho se encontram – ambas agora sob domínios malignos – e, enfim, reconhecem-se, num momento de mútua admiração. Em Estátua, ocorre o oposto; anulada a alma, resta neutralizar o corpo: é quando Joana, aterrorizante, se desvela num andar de avestruz (ave estampada inclusive no figurino) por detrás de um biombo. A última brincadeira de estátua imobiliza o corpo definitivamente para que ele não fuja, não voe, não deixe a gaiola. A admiração agora é para com a presença física e é unilateral, de Joana para a babá Isabel. A garota, enfim, tem a chance de abraçar o corpo de uma mãe, mesmo que substituta – uma mãe que não pode abandoná-la. No plano final, o rosto de Isabel em uma expressão inequívoca – a do horror.