Cinefilias possíveis. O chamado da vez — lançado a vinte colegas da crítica — veio de uma curiosidade pelas cinefilias alheias, de saber o que/como/quando vêem algumas daquelas e daqueles que acompanho, se chamam o que vivem/fazem, de fato, de “cinefilia” (ou se libertam-se do nome, ainda que seja importante dar nome às coisas, ainda que seja essencial que os nomes não matem as coisas). Afinal, que cinefilias são possíveis nesse mundo que nos consome enquanto tentamos descobrir outros mundos, trovejantes em seus sons, luzes e fúrias? Que vidas dedicadas aos filmes se fazem (e como se fazem) quando a vida em sua dimensão maior concorre, como se a cinefilia e a cinética dos dias berrassem, uma de cada lado, “olha para mim, olha para mim”? (Aliás, os filmes precisam das vidas por inteiro? São vampiros, por acaso?). Como é ser um amador do cinema quando a geografia não colabora, quando a memória não colabora, quando as salas não colaboram, quando às vezes nem os filmes colaboram?
Cinefilia. Palavra austera, meio prepotente, meio démodé (tanto quanto démodé). Palavra precisa (porque por ela entende-se minimamente do que se está falando) e imprecisa (porque seus limites são orgânicos, variáveis e maleáveis a dependerem dos sujeitos e objetos). Palavra posta em textos que, a um só tempo, vão ao encontro e de encontro um com o outro, que expõe a subjetividade dessa experiência do eu com a coisa, com o mundo. Palavra que passa pela memória geográfica de Euller Felix, pela precisão de Gabriel Carneiro, pela montagem de Giovanni Comodo, pela estilização sinuosa de Luiz Soares Jr., pelos downloads abismais de Roberto Cotta, pela hipocondria de Álvaro André Zeini Cruz (este que vos escreve).
Os textos seguem abaixo, conscientes da insuficiência de tratar de uma palavra robusta e cheia. Mas eles tentam. Boa leitura.
Do RMVB a crítica: jornada cinéfila do crítico periférico
Por Euller Felix
Minha cinefilia, como de muitos que nasceram nos anos 1990, começou com a busca pelo que assistir no final de semana na locadora do bairro. Enquanto um jovem que estava crescendo, indo para a escola, passar na frente desses lugares era incrível. Eram pôsteres que chamavam a atenção, aqueles atores e atrizes que você tinha visto pela TV em algum filme e achado legal, ali do tamanho de uma criança entre 10 e 12 anos, era algo de um sentimento surreal. Passei horas de sexta feira procurando os filmes que ia assistir e só devolveria na segunda-feira.
Depois, na primeira metade ou no começo da segunda metade dos anos 2000, ganhei meu primeiro computador. Foi engraçado que, minha família por nunca ter tido acesso a aquela tecnologia, fiquei quase um mês com o computador em casa só jogando os joguinhos que estavam instalados. Isso pois não sabíamos que a internet já havia sido conectada. Foi um erro de não saber como funcionava a rede mundial de computadores e um erro da atendente que não nos explicou muito bem como se conectava com o provedor de internet. Escrevendo e lendo isso hoje me parece estranho, afinal estamos em um mundo em que a internet é uma presença absoluta, mas naquele período as coisas eram bem diferentes.
Com o computador na sala (não podia ficar no quarto, tinham predadores naquelas máquinas e os adultos tinham que ficar de olho no que um jovem adolescente estava fazendo), comecei a encontrar sites que falavam sobre cinema e disponibilizavam filmes antigos. Nada em boa qualidade, óbvio, os arquivos eram em RMVB e tinham cerca de 200/300 MB e se fossem de tamanho maior do que isso tinha que deixar a noite inteira baixando. Mas foi assim que conheci os clássicos do cinema dos anos 1920, 1930,1940 e por aí vai. Foi em uma cópia horrível desse tipo que tive meu primeiro contato com Cidadão Kane, de Orson Welles, com Rashomon de Akira Kurosawa, com Pai e Filhade Yasujiro Ozu, e até mesmo com grandes nomes do cinema brasileiro, como José Mojica Marins, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, entre outros grandes clássicos do cinema que todo mundo considera fundamental na vida de qualquer cinéfilo.
Você pode achar interessante que na minha primeira formação cinéfila não tenha o espaço “cinema” e isso tem uma razão: mesmo morando no estado de São Paulo, o acesso ao cinema é um pouco mais complexo para quem vive nas mais diferentes periferias. Os grandes centros das cidades, que é onde estão os cinemas, não são pensados para o acesso de pessoas periféricas. Na verdade, estes grandes centros são pensados para que as pessoas pobres e periféricas não tenham o direito de frequentar e acessar a cidade. Por isso que sempre quando estou discutindo sobre acesso e democratização ao cinema digo que este assunto não está desconectado da discussão sobre direito à cidade.
Alguns colegas da crítica caem no erro comum de acreditar que quem mora no eixo rio-sp é privilegiado por estar nestes estados, só se esquecem de adicionar o fator “classe”. Quem não nasce ou não vive próximo às regiões centrais dessas cidades não conseguem ter acesso aos diferentes festivais de cinema e de arte em geral que acontecem em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Para muitos que vivem em regiões da Zona Sul de São Paulo, ou em alguma periferia do ABC paulista (dou estes dois exemplos por já ter morado nas duas localizações), estão tão distantes desses festivais, desses cinemas, que os colegas que moram em outros estados. As questões de classes também são questões que distanciam as pessoas dos cinemas.
Por isso aqui retomo o assunto que citei em um dos parágrafos anteriores: não há como se discutir acesso ao cinema e aos festivais sem discutir a questão do direito à cidade. Quem mora em regiões periféricas de todo o Brasil não tem direito às cidades em que vivem. No meu texto sobre elitismo no cinema eu comento uma experiência pessoal sobre como foi difícil estar em uma sessão de cinema de um festival que aconteceria à noite na região da Paulista, sobre como eu adoraria assistir Parasita e Bacurau nos cinemas, mas as condições de acessar aqueles cinemas não eram possíveis para mim. Enquanto estava escrevendo esse texto que você está lendo agora, uma postagem com ideia semelhante apareceu para mim no Instagram, em que uma pessoa falava das dificuldades de comparecer em uma sessão de cinema no Estação Net, no Rio de Janeiro por conta da localidade, e que aquele seria o único lugar em que poderia assistir filmes fora do circuito de shoppings, como, por exemplo, filmes nacionais. A partir dessa postagem muitas pessoas compartilharam as diversas dificuldades de se locomoverem para os cinemas e conseguirem acessar os filmes. Ou seja, mesmo morando em uma cidade que tem a oferta de filmes nacionais, não conseguimos acessá-los.
As cidades não são planejadas para facilitar a locomoção de pessoas pobres e periféricas dentro dela, principalmente nos centros. Para nós que moramos nos extremos, nas regiões distantes dos centros da cidade, não conseguimos usufruir das praticidades, dos festivais e dos cinemas de rua que existem ali. Para a grande maioria das pessoas que moram nas regiões periféricas, só temos acesso as coisas bonitas e interessantes dos centros da cidade pelas imagens que vemos ao nos locomovermos como sardinhas em um ônibus lotado de um lado para o outro quando estamos indo ou voltando do trabalho.
E é até engraçado perceber que muitos colegas da crítica ignoram isso (e aqui eu estou acreditando que eles estão ignorando e não concordando com essa lógica). Se um desses colegas tentar pegar um metrô, fazer uma baldeação (ou transferência, ou não sei como se fala na sua região) entre um metrô e outro no horário de pico, vai se olhar como um dos operários do filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, que anda como um gado em direção ao abate de cada dia. É engraçado, né? Muitos dos meus colegas da crítica citam diversos filmes que discutem questões sociais, que discutem as classes sociais, mas não conseguem enxergar as relações de classe que os cercam. Não conseguem observar as relações de classe no próprio exercer do seu ofício. E não conseguem perceber o quanto as questões de classes impactam nas relações entre as pessoas e os cinemas.
Enquanto escrevia esse texto me lembrei de uma piada que eu ouvia bastante por aqui: o engraçado de morar em São Paulo é que você está sempre a duas horas de São Paulo. Sempre que eu quero assistir a algum filme nacional e/ou fora do circuito do shopping, eu penso nessa piada. Nunca tem uma sessão que não seja em um cinema em que eu vou conseguir me locomover em menos de duas horas. Isso se eu tiver sorte de sempre chegar em um ponto/estação e o transporte já chegar. E antes que alguém fale “pega um Uber”, eu desafio a tentar pegar um transporte por aplicativo com destino a alguma região periférica à noite. Não dá nem para ficar com raiva dos motoristas, quem mora por aqui sabe o risco que podem correr por aceitar uma corrida em determinado horário da noite. Simplesmente não dá. Pois é, para quem mora nas periferias, ir para o centro da cidade é quase como ir para outro país, inacessível quando não se tem dinheiro (ou quando não nasceu com privilégios).
Enquanto a crítica de cinema, os pesquisadores e os cinéfilos em geral não colocarem o fator “classe” nas suas análises e discursos sobre o acesso ao cinema, esses discursos estarão fadados a serem somente palavras bonitas, as letras que eles digitam em redes sociais ou em textos só vão ser letras mortas. Não terão efetividade e nem base nas realidades. Ou a crítica de cinema olha para a realidade das classes sociais ou ela vai só se ocupar de discutir os filmes de forma abstrata, como algo que não é feita por seres humanos que se relacionam em uma sociedade de classes sociais. Se a crítica continuar a ignorar essa relação, ela vai caminhar para existir somente como parte da divulgação e do marketing de um filme, e não como uma parte importante que não só pensa o filme, mas também interfere no fazer, no criticar e no consumir o cinema.
Por Gabriel Carneiro
Cinema é pra mim trabalho e também diversão. Escolhi trabalhar com filmes porque gosto de vê-los. Está presente no meu dia-a-dia, vejo alguns filmes por semana, seja porque irei escrever sobre eles, dar aula, ou está no meu escopo de pesquisa etc., seja porque tenho curiosidade de descobrir novas obras (pra mim) ou porque me interessa rever outras.
Nos últimos tempos, escrever críticas é uma atividade quase diletante, é muito difícil ser pago por isso de alguma forma. Estou no doutorado (em cinema), então acabo me dedicando mais a isso. E o processo é desgastante e exaustivo, te exige um olhar sempre atento e analítico. Por isso, muitas vezes, vejo certos filmes como escape, um cinema que me é confortável – e nem por isso pior, claro. Tenho uma predileção especial por cinema de gênero, ficção científica, horror, policial, faroeste etc. – e fases específicas, como policial dos anos 90, horror dos 70, slashers, Yakuza, ficção científica dos anos 50 etc. etc. Mesmo esse escape, entretanto, é condicionado. É muito difícil desligar de certas prerrogativas do olhar analítico. E está tudo bem.
Dito isso, hoje vejo muito mais filmes antigos do que atuais, não só porque meu trabalho tende a ter uma perspectiva historiográfica, como porque me atraem mais. Como não atuo mais na crítica jornalística, me desobriguei a acompanhar o circuito, vejo o que me interessa. Havia ano em que via 200 filmes e 20 me pareciam minimamente interessantes. Evito obras que me pareçam ruins, especialmente se não houver curiosidade genuína ou não estiver no meu escopo de pesquisa expandida. Para quê ver novas obras de cineastas que sempre realizaram filmes abjetos, coisa que detesto tanto? Talvez esteja perdendo algo, mas conforme fui envelhecendo, isso deixou de ser uma questão. Há uma infinidade de filmes para ver, há que se fazer escolhas.
O cinema hoje está principalmente em casa. Moro em São Paulo, mas afastado do circuito, dependo de transporte público insipiente, nem sempre me animo a sair, ainda mais porque boa parte das salas da cidade está com uma péssima qualidade de projeção. E sou cada vez mais chato com isso; ter de sair da sessão porque o som está chiado, a imagem está muito escura ou a janela está errada é uma experiência desagradável. E parte do cinema contemporâneo que tem me atraído não chega às salas, está nos streamings e afins. Cinefilia tem um pouco disso pra mim, o desejo de descobrir filmes e cinematografias novas – novas pra mim, claro. Nos últimos anos, o cinema contemporâneo que mais tem me interessado é o japonês – esse sempre, em todas as épocas – e o indiano, que hoje só tem como ser visto em casa. Mas gosto muito ainda da experiência do cinema. Ainda bem que temos o Cinesesc e algumas outras salas que permitem algo do tipo.
Cinefilia, palavra de montar
por Giovanni Comodo
Começou aos poucos, foram pequenos sinais. Recentemente, era ouvido aqui e ali, em voz baixa e então em alta, sem constrangimento, como normalizada. Uma completa surpresa: a cinefilia havia voltado.
Ou ela nunca havia nos deixado, afinal. Na minha formação e relação com o cinema, sempre foi uma palavra que fazia pouco sentido, algo que inspirava uma nostalgia de algo que nunca havia vivido. Tive a sorte de ainda aproveitar os tempos áureos (e os decadentes) das vídeo-locadoras e de cinemas que não estavam totalmente dependentes da Disney/Marvel: os filmes pareciam estar logo ali à nossa espera — o que não era totalmente verdadeiro, depois que se descobriam os novos e imensos mares dos blogs e fóruns online onde era possível navegar e se surpreender constantemente para quem se aventurasse por aqueles territórios, em uma sensação de que sempre havia o ainda não-visto, não-debatido, não-escrito-sobre em possíveis e perenes novos encontros.
Porém “cinefilia” parecia ser algo de outra ordem, que partia de si e terminava nela própria. O sufixo não tampouco ajudava, coisa de doença. E a vivência no mundo fora das salas de cinema nos mostrava que os tais cinéfilos eram aquelas pessoas (homens) movidas por uma obsessão que parecia acreditar que o cinema era maior que a vida, em concursos de acumulação, legitimação e poder à revelia de quem estivesse por perto. Era para muito além do ridículo, antes só o fosse. A importância dos muitos textos e denúncias partindo de mulheres sobre as suas relações com a cinefilia — das Elviras e de tantas outras que usaram o Facebook e tudo mais — não deve ser subestimada e pareceu jogar uma pá de cal em qualquer relação com a tal palavra.
Corta para 2024 e na graduação de cinema onde dou aulas percebo que vários dos alunos, todos bem jovens, a grande maioria em sua primeira graduação saída do Ensino Médio, a palavra ressurgiu, (re)habilitada, inclusive pautando debates e mesas-redondas. Não só isso, como uma qualidade interessante entre homens e mulheres, um aspecto da vida compartilhado e criador de uma comunidade e uma identidade — aparentemente mais saudáveis, entre perfis no Letterboxd, X e links para Drives (o que só de escrever, admito, me faz parecer mais velho do que sou, paciência).
No meio tempo, uma pandemia, isolamento, tantos traumas coletivos e individuais. É de se imaginar que algo não pôde ser transmitido ou alertado e isso fez a palavra, caída em desuso, acumular pó e esquecimento, apenas para ser resgatada, remontada e ressignificada por novos usuários, seus novos proprietários.
Já dada como morta e enterrada diversas vezes, a cinefilia retornou — como o próprio cinema já teve a morte decretada tantas vezes, seus fantasmas e monstros. Faz sentido que volte pela mão de mais jovens, em fase de uma procura por grupos e por seu lugar no mundo, mediados por filmes e gostos. Podem construir o que desejarem a partir dela — e inclusive abandoná-la posteriormente sem pestanejar. É preciso estarem atentos para não cometerem erros e fetiches do passado, que sejam buscas fundamentadas em encontrar o próximo e o diálogo. Acima dos filmes, a vida. A ver.
Da minha parte, continuo sem usar o termo cinefilia ou sentir conexão a ele. Talvez explicar a relação com o cinema demande mais palavras, mais signos abertos para outros mistérios e relações. Lembro da vez em que o Pedro Costa veio para Curitiba em 2017 e, chegando aqui, em sua masterclass desejou exibir Uma Visita ao Louvre da dupla Straub-Huillet, na íntegra de seus 44 minutos. Não havia legendas em português disponíveis, a produção acionou seus contatos e em uma madrugada Fernando de Mendonça (o incansável user Nandodijesus) fez as 586 entradas de legendas no arquivo, possibilitando o filme ser acessado aos presentes ali e a centenas de pessoas depois. Ao saber disso, o Costa mostrou-se tanto surpreso como deu um sorriso de lado, exclamando “esses loucos furiosos”. Desde então, pareceu-me justo: a relação com o cinema — e a vontade de trabalhar com ele — exige loucura e fúria para enfrentar os tantos desafios, precariedades, editais, desuniões, biles e até cinéfilos. E no meio disso, fazemos amigos, conversas e, se duvidar, cinema.
Giovanni Comodo é cineclubista, crítico de cinema e pesquisador, mestre em Cinema e Artes do Vídeo (PPG/CINEAV-UNESPAR) e integra o corpo docente da Universidade Estadual do Paraná (FAP/UNESPAR) onde leciona crítica cinematográfica. Integra a equipe de programação do Cineclube do Atalante na Cinemateca de Curitiba desde 2018, pelo qual já produziu diversas mostras, oficinas e publicações. Autor de “Éric Rohmer e O Raio verde (1986): encenação e criação entre o acaso e o controle” (Letraria, 2024).
Cinefilias possíveis: ainda um cine-filho para tempos de interregno
Por Luiz Soares Jr.
Um dos textos mais admiráveis do macmahonista Jacques Lourcelles (sim, o macmahonismo, movimento da cinefilia francesa dos 50 que aliou, em suas análises e jouissance, Reação e fascinação, como Speer outrora para Hitler) é um diálogo imaginário entre antigos e modernos de 1995; mais precisamente, um texto digressivo e com um senso de humor entre irônico e elegíaco sobre um diálogo noturno a propos de um filme do grande decadentista russo pré-revolucionário Evgueni Bauer; mas por que exatamente admirável? Porque, como o corvo de Poe, fala de mim, do meu fantasma de cinéfilo: never more! A criança que eu um dia fui permaneceu fascinada pela lanterna luminosa e numinosa do cinematógrafo luimiériano, como Lourcelles pelos filmes épicos de Freda e Cottaffavi; porém, ao contrário dos textos suntuosos de Lourcelles, Mourlet e Techiné sobre os filmes populares de mise en scène da Itália pós-fascista, da França ocupada e da América adolescente eterna, foram André Bazin (na escritura), Jean Renoir, Rossellini e o De Sicca neo-realista de Umberto D e Ladrões de bicicletas que me abriram desmesuradamente as retinas para a empresa da res extensa e a res mágica do Real, mas este pré-lacaniano: não o buraco objeto a do simbólico, mas a carne tesa e irisada de luz da vida.
Como o spleen dos tecidos de Sèvres e dos cenários de Reinhardt para Bauer, o cinema foi o abre-te Sésamo para mim, a chave para a verdadeira vida na crista das ondas proustiana do arremate da Recherche: a mediunidade pancromática das kodaks de Bauer (e Griffith) recebeu, com o realismo rough cut do pós-guerra, um plus de fascínio, e enquanto viver não falarei senão de fascínio, porque foi o sal ático que fermentou meu amor pelo cinema; privado dos pés até os quatorze anos (eles nasceram tortos, e imaginem o arsenal de torturas com que fui armado para chegar à vida real do instante em que nasci até os 14!), o cinema foi minha chance de engendrar-me como o sujeito soberano da fenomenologia de Hegel, enfim sujeito e não mais objeto para a piedade ou o horror alheios: àquela época, em particular o neo-realismo e suas situações óticas puras (Deleuze) me deram a chance, o mood e a arma para reverter a posição de inferioridade inata em uma vitória (de Pirro?), por intercessão virtual do puro fenômeno: o suicídio do menino nazista em Alemanha ano zero, a deambulação melancólica dos ladrões de bicicletas pela Roma calcinada, a empregadinha de Umberto d com seus jatos d’água e fogos fátuos para espantar as formigas foram minhas primeiras vivências plenas, de direito e não apenas de fato, no mundo dos homens; foi por intermédio da pulsão escópica que me fiz homem, aos 15 anos: simultaneamente, a descoberta da homossexualidade completou o percurso iniciático, e graças a estas pedras de toque de exclusão e dor (os pés, a pegação outsider) eis-me aqui; não por acaso o filme de horror que mais me perturba é o Exorcista: garoto edipiano que permaneceu fixado na mãe, e, portanto a quem a Natureza poupou do mal maior do incesto impelindo-o para a homossexualidade, via naquela cruel fábula psicótica e agostiniana a chance terrível de enfim concretizar o Édipo sem pagar o preço da castração por isso: foder a mãe (com o crucifico) e matar o Pai, como foram assassinados todas as figuras parentais do filme de Friedkin; cito este exemplo para dar um metro da relevância fantasmática da cinefilia para mim: um cimo luminoso (a sublimação: afinal, isto é “só” um filme) e um salto no vazio dos baixios mais rastejantes, um nec plus ultra de que só se sai Outro em todo caso.
Mais ou menos páticas, fantasmáticas, chez nous ou jamais, cinefilias são experiências tardias que reelaboram primórdios; somos escolhidos antes de escolhermos: algo de muito seminal, de muito vertical, de abissal e equívoco, encontra enfim a luz de seu Logos, e insiste em emergir à superfície do “caso” para espelhar-se em sentenças expiatórias de para-si; o nosso caso (epocal) encontra, como a tv nos exemplos agora paradigmáticos de Biette, Daney e Lourcelles (a seção da Cahiers e do Libé dos fantasmas do permanente continuam a assombrar a minha escritura como se fosse ainda um adolescente descobrindo o maneirismo de Carax e Coppola nos 80, entre a primeira masturbação e o último Bud Powell) tem na internet o seu território situado, sitiado de floração: somos piratas, cosmopolitas, narcisistas, cultos como nunca, mas num mundo privilegiado, alijado das agruras e das epifanias do mundo real: a cinefilia da internet é, como toda cinefilia, também um exercício masturbatório de contrabando perverso, de filiação e de legado interditos, secreta, mas esta abdicou da atualidade fremente do instante-embate em nome da virtualidade adstringente de uma alteridade que permanece um limiar transcendental (o de Kant, não o de Schrader), um limite constitutivo a ser evitado; temos nossos modos próprios de contágio, de contaminação afetiva e virótica, embora permaneçamos ilhados: como em tempos de roleta russa para um recrudescimento da aids entre os jovens que não foram contemporâneos da catástrofe epocal dos 80, os arquivos baixados ou visualizados o são por todos, sem restrição ou contenção: a experiência é este vacum vertiginoso do ip anônimo, de uma erotização que, ressoando sempre as palavras de Serge Daney em uma entrevista do final dos 70, ainda é erótica, mas num sentido sem sujeito objetual, sem relação; é como se o simulacro de Lyotard e outros engenheiros pós-modernos se fizesse carne e habitasse entre nós; a noção clausural de um espaço-tempo atual, contido por coordenadas de eidos, por limites ainda gregos-noção esta que era possível de ser pensada no ‘mundo’ clássico do cinema ou não, ainda substancialista, ainda definido por limites figurativos e elaborado por um espaço centrípeto se perdeu enquanto tal, e o classicismo de Kiyoshi Kurosawa, embora seja debitário do espaço como o de Tourneur e de Ford, agora o explora sub-repticiamente, segundo a lógica do fora de campo e quadro, ou o unheimilish freudiano-schellinguiano: os interstícios e os interregnos, e não mais a integridade frontal e orientada pelo raccord diretivo do olhar do que nos aparece em Stars on my crown ou Como era verde o meu vale (sobretudo: não mais central, como o Aumont do Olho interminável nos levara a concluir); permanecemos herdeiros e sujeitos de um legado, como a presença horizontal de Heidegger nos levara a ver (passado, presente e futuro: o êx-tase do dasein será sempre nosso), mas de uma maneira integralmente distinta do século 20, podendo mesmo dizer que o virtual subverteu ou substituiu a preeminência do atual na totalidade da experiência; no Lukács da Teoria do romance, o epocal determina a forma, enquanto o fundo permanece arquetípico e antitético; mas a forma é configuração de forças móbeis e saturadas, é instante pregnante: de uma relevância a que, agora libertos da metafísica substancialista (obcecada pelo centro como o índex de toda certeza), devemos corresponder; cabe talvez a nós, cinéfilos cooptados pelo para-si da linguagem e críticos, achar um meio-termo (de fala, de logos, de língua esperanto) que reconcilie novamente, para estes tempos, a forma e o fundo de nossa experiência comum do cinema e da vida tout court; é uma tarefa a ser empreendida, pois me parece que ainda habitamos um espaço-tempo mais entrecortado por dúvidas e angústias do que pela clareza de uma elocução definitiva, filosófica; o tempo é vasto e profundos os seus impasses, e a tarefa deve estar à sua altura; temos a oportunidade única de gerirmos e gerarmos, na medida de nossa finitude possível, o fruto laboral da Promessa.
Aquilo que contempla te torna abismo
Por Roberto Cotta
Uma mesma rotina se repete. Filmes baixados no Making Off e vistos no computador. Não há dinheiro para comprar HD externo, logo as cópias são descartadas ou devolvidas. Uma ou outra é transferida para um DVD regravável, enquanto as mais especiais ficam armazenadas no PC por tempo indeterminado.
Décadas depois, outra rotina recorre. Filmes baixados através de um acervo no Google Drive são exibidos em aula. Os mais curtos são mostrados na íntegra, os mais longos têm trechos selecionados. Uma nuvem é criada para que os alunos possam rever tudo. Como o espaço é limitado, as obras ficam no ar só por uma semana.
Separadas por quase 20 anos, as dinâmicas apresentam semelhanças. Em ambas, a pirataria é a alternativa mais plausível de acesso. Apesar das plataformas de streaming, quem mora no interior raramente consegue assistir aos melhores filmes se não for por essa via. A efemeridade também é constante. Baixa-se para poder compartilhar, mas não se sabe por quanto tempo.
Também é preciso considerar as diferenças. Décadas atrás quase não havia faculdade de cinema. No meu caso, estudava Rádio e TV, o mais próximo que poderia estar de uma formação cinematográfica. Era necessário correr atrás dos filmes porque dificilmente chegariam por meio educacional. Com vários cursos de cinema espalhados pelo país, hoje é mais natural que a educação viabilize filmes, como acontece onde trabalho, na Universidade Federal de Pelotas.
Contudo, o Tik Tok, o Instagram, os games e as narrativas seriadas parecem mais atrativos à juventude. A disputa de telas é intensa, assim como a dispersão. Como frear o desinteresse se não for pela obrigação? Uma saída é deixar que cada um escolha suas referências, não à toa muitos cineclubes têm sido criados de forma autônoma. Entretanto, vários estudantes vão às aulas esperando ver aquilo que conhecem. Mas assim perde-se o mistério proposto pelo desconhecido, o maior benefício da cinefilia.
E como a cinefilia pode sobreviver a tantas tarefas? Confesso que sempre nutri inveja daqueles que tiveram suas primeiras sessões de cinema na infância. Nascido em Ibicaraí/BA, cidade onde a sala escura virou Igreja Universal, pude conhecer a tela grande somente na adolescência, na vizinha Itabuna/BA, quando o shopping e seu multiplex foram inaugurados. Hoje tenho inveja daqueles que possuem tempo, seja para baixar e assistir em casa ou ir às raras salas de rua que ainda existem nas metrópoles. A rotina de professor, ao menos aqui, é permeada por um produtivismo desconexo do bem-estar, a partir do qual se valoriza o trabalho integral sem lazer.
A cinefilia pode ser viabilizada pelo Cine UFPel, sala universitária localizada no centro da cidade. Entretanto, não há finanças para mantê-la funcionando. O projetor quebra e não há como consertá-lo. O teto cai e é um deus-nos-acuda para colocá-lo no lugar. Queremos exibir filmes brasileiros, mas muitas distribuidoras nos cobram os olhos da cara. A não ser por um ou outro apoio (Vitrine, Descoloniza, Taturana etc.), os filmes têm que ser exibidos de forma clandestina. É então que voltamos ao primeiro parágrafo. Como há 20 anos, sem salvaguarda de quem quer que seja, é preciso valorizar a pirataria como forma de acesso ao conhecimento.
Sobre as tarefas em meio à rotina, já desisti de ver a mesma quantidade de filmes que Filipe Furtado, ter a erudição de Ewerton Belico, a prosa de Andrea Ormond, a síntese de Fábio Feldman ou a precisão analítica de Luiz Carlos Oliveira Jr. Há coisas que o curto tempo de vida não permite. Mas espero que aqueles que ajudo a formar tenham mais chances. Torço que a cinefilia continue habitando suas veias, tornando-se abismo, através do qual se lança sem saber o destino. Como Armando Nogueira, imagino que seja possível transformar a superfície do lenço e da tela em latifúndio. Que os filmes, então, possam fazer do mistério uma vontade de contemplar, conhecer e agir.
Cinefilia Indolente – Conto autofictício em formato de relatório médico
por Álvaro André Zeini Cruz
Paciente: A.A. 36 anos, masculino.
Hipótese diagnóstica: cinefilia indolente.
Relato da consulta com o paciente A.A., que aceitou nosso convite para voluntariar-se a esta pesquisa de cunho científico, concordando também com a elaboração deste documento. Sem delongas, perguntamos sobre o início dos sintomas. O paciente informa localizá-los na adolescência (por volta dos 15 ou 16 anos) passada na cidade de Bauru, onde mantém residência. O primeiro indício perceptível seria, segundo ele, a aquisição do hábito compulsivo de ir a um local de alto risco, hoje já erradicado — a videolocadora. Uma de bairro, enfiada nos fundos de um posto de gasolina, completa. Relata que havia, às quartas, a promoção “leve 4, fique 4, pague 3”, e logo emenda a primeira de muitas digressões: confessa ter frequentado locais desse tipo antes, quando ainda morava na cidade de Itápolis, mas restringe essas visitas às férias, o que, conjecturamos, descartaria o início da condição nos anos 1990. Entretanto, ressalta o fato de sempre ter tido acesso à televisão; além dos desenhos animados, assistia não uma, nem duas, mas as três novelas que compunham a grade televisiva noturna. Mais do que isso, brincava de escrever novelas num caderno Tilibra 20 matérias, o que esta junta médica considera uma elaboração lúdica incomum na infância. Essas informações inviabilizam que descartemos o início da condição nesse momento/faixa etária, mas, não eliminamos a probabilidade do agravamento nas videolocadoras da puberdade, fase em que os hormônios e as ideias costumam ser excessivamente maleáveis.
A.A. reconhece que essa possível condição (não rara, mas fora de moda) pode ter interferido nas escolhas realizadas naqueles anos em que o fim da adolescência e o começo da vida adulta são como nitrato de prata em chamas — queima rápido e forma uma fumaça só. Responsabiliza a faculdade de cinema por assentar o que chama de “molde de personalidade”, consumando o que antes era apenas uma sensação meio etérea, provocada, talvez (já que estamos no terreno das hipóteses) pelo bolor das capas de VHS e pela constante tensão de causar riscos em DVDs. Fato é que o paciente pôs na cabeça que era isso que faria e não conseguiram demovê-lo. Não bastasse, nesse caldo de anos, pôs-se a escrever sobre essas coisas vistas e ouvidas. (“Quem aqui nunca teve um Blig?”, perguntou, obrigando metade de nossa equipe multidisciplinar a dar um Google para descobrir o blog da Ig). Algo que nos parece oportuno pontuar: como se pode notar, o relato segue entre divagações que nos são suficientes para elucubrar um movimento mental feito de solavancos fragmentados. Consideraremos o contato excessivo com mundos-telados como uma possível causa.
Os olhares entre nós, da junta, dão o primeiro veredicto: não há dúvidas de que o curso de cinema acentuou e acelerou a condição do paciente. Apesar do tom nostálgico, A.A. usa poucas palavras para descrever esses “dias de pessoas que viam e falavam de filmes”. Num constrangimento orgulhoso, diz que conseguiu entrar ali com o enxuto catálogo da locadora de posto, conhecendo coisas como Burton, Spielberg e Tarantino (não à toa, no vestibular específico, trocou o tecido e fez de Veludo Azul, Cetim Azul). Presume que talvez não tenham se importado porque Lynch, provavelmente, não se importaria. Fato é que ali reviu Cidade dos sonhos com mais curiosidade do que aos 15 anos. Impressionou-se com o mesmo Elefante que, anos antes, havia providenciado um cochilo na sala. Viu Ozu, Carpenter, Hawks, Hitchcock, De Palma, mas também o que havia nas primeiras sessões (mais baratas) do shopping Estação, além daquelas a um real, aos domingos, na “sala-porão” do finado Cine-luz. Nesses Curitib-anos, passou da leitura do Cinema em Cena à Contracampo e cia; da escrita em blogs aos portais locais e revistas universitárias. Ver cinema tornou-se escrever cinema, ou melhor, teimar em escrever sobre cinema, mesmo com a permanência desse grilo falante imaginário soprando “deixa disso; você sabe pouco, quase nada”. Sobre esse hábito/teimosia (vício?) da escrita, seguiremos em atenta observação, considerando se cabe ou não enquadrá-lo na esfera dos “sintomas”.
O paciente sintetiza que nesse tempo “dos 20 e poucos aos 20 e tantos” continuou a estudar, e que, em um desses estudos, tentou responder a uma série de perguntas sobre essa “condição, meio desgastante, meio renovadora de ver-escrever”, mas descobriu haver perguntas que nasceram para sofrerem mitose. Diz que, disso, resultaram as mais de 200 páginas sobre essa gente que, como ele (mas melhor do que ele), escrevia sobre filmes. A essa altura, o paciente A.A. expressa uma espécie de fadiga que já se estampava no rosto e no fôlego: cansara de historicizar sobre si; preferia seguir pelas hipóteses relativas ao diagnóstico ao qual presumíamos. Cinefilia. “Com um nome desses, podemos logo dizer que é doença, não?!”, ironizou.
*obs.: dada a quantidade de desvios discursivos e a dificuldade de os delimitarmos em aspas que já soam excessivas, passaremos, a partir daqui, ao discurso indireto livre, fazendo desse relatório médico um teste cognitivo àqueles que porventura o lerão.
Tomemos, então, como cinefilia, dizemos. A próxima pergunta é que cinefilia é essa? Certamente, não a de ontem, retruca, aquela cinefilia com uma curiosidade inocente, pueril, de quem chega aos filmes para descobrir mundos e não para, de pronto, contrastá-los a este mundo, diz, dando murrinhos no braço da poltrona. Uma cinefilia da poética, da interpretação não prematura, mas maturada pela decantação do ver, completa, parecendo-nos descambar à filosofia de boteco. Continua: uma cinefilia que revigora, mas renova a sede ao invés de matá-la. Uma cinefilia que, hoje, talvez exista mais na memória e na esperança de ir aos filmes tentando repará-la, à procura desses momentos irrecuperáveis, desses encontros de certos anos ingênuos com a mágica da luz e do movimento. Alguns entre nós veem, nesse espasmo de pieguice, um sintoma; alguns mal controlam o impulso de prescrever receitas pesadas.
Não estou sendo melancólico, segue A.A. ao ler, ou melhor, ao ver nossas caras, estou sendo realista. Esse tipo de cinefilia, ferina e dócil ao mesmo tempo, só se consegue em regressões bissextas, em singularidades que dependem muito do que está na vida além dos filmes. Até porque, nesses anos de agora — que, sejamos sinceros, são a maioria dos anos —, há a vida e, atrás dela, as batalhas para abrir brechas a essa outra vida dedicada aos filmes, a tal da cinefilia. Não é uma tragédia — segue o paciente, transparecendo (ou simulando) resignação —, é o movimento, a transformação das coisas e das relações. Assim como se transformaram as listas (caderno espiral, arquivo Word, álbum de Facebook, Letterboxdopamina…).
Ainda nesse ímpeto de autoanálise, cospe uma confissão: sente culpa por não ver tantos filmes (ao menos não como outros que sofrem da mesma condição, e cujos contatos já estamos providenciando — há os que veem 500, 600!), sente também uma liberdade de poder querer ver o que lhe der na telha, acreditando numa espécie de sincronicidade fílmica, num movimento em que os filmes se apresentam quando tem que ser. Não dá para saber, mas sempre creio que não é meu último dia por estas bandas. Por isso, vejo com a calma de quem vê vivendo, de quem crê que os dias se multiplicarão o bastante para caber o que tiver que caber.
Cinefilia e não cinefagia, observa um dos nossos num murmúrio. Talvez seja coisa da faixa etária, diz outro, antes de se entregar: os mais jovens avaliam em estrelinhas assim que os créditos começam a subir. Entre o riso, A.A. solta que ninguém está a salvo de ímpetos quantitativos, eles teimam, voltam vez ou outra. Mas evita-os (ou tenta), porque costumam causar mais frustração e esquecimento do que qualquer outra coisa. Confusão mental, anotamos coreografados em nossas pranchetas, fazendo o paciente franzir o cenho para, depois, ponderar com um aforisma: li num muro que o conhecimento ninguém nos tira, nós esquecemos sozinhos. Silêncio (talvez seja hora de encerrarmos a sessão). Então, o paciente confidencia que essa passagem-picho apócrifa acalenta seu coração, ainda que, em seu íntimo, acredite que algo do visto-esquecido sempre permaneça. Um resquício, um lampejo que seja. Às vezes, lembro-me mais dos planos do que das histórias dos filmes de Rohmer, diz, entregando um (a)notado pendor à falação. Talvez veja menos para guardar mais, prossegue num lamento ambíguo. Ou talvez seja só preguiça, excesso de sono. Certo mesmo estava aquele professor de faculdade (qual era mesmo?) que disse, vejam filmes aqui e agora. Depois, já era.
Um dos nossos mais perspicazes metodológicos levanta a mão e, com alguma empáfia, diz que não pode deixar de notar que o senhor escreve majoritariamente sobre o que gosta. Por que? O paciente se remexe na cadeira, provavelmente provocado pelo tom desafiador. Escrevo porque preciso, sobre os filmes que amo (e preciso), porque a crítica é justamente essa outra face, teimosa, tinhosa, que costuma se intrometer entre outros afazeres, mas que, principalmente, não paga minhas contas. Nas negociações entre o ímpeto do ato e a possibilidade do tempo, tem me sido natural escrever sobre o que amo ao quadrado, ou seja, aquilo que merece meu amor e meu tempo, que me merece como amador. O ódio pode até despertar a escrita que expõe outros amores — maiores, ofendidos e profanados pela coisa odiada —, mas quase não tem me convencido a dispensar-lhe tempo. Enfim, escrevo porque preciso, volto porque amo. Tudo isso como e quando posso.
Novo silêncio. Constrangedor. Numa cadeira mais afastada da roda, o estagiário pergunta: dá ao menos para atribuir um CID? A.A precisa ir (ou, ao menos é o que diz). Ao cinema?, saem as vozes síncronas. Onde moro, os filmes em cartaz quase não me interessam, mas, talvez. Quem sabe?… Para casa? Trabalho? O senhor dá aula disso, não? Sim, por isso acho que falo tanto, mais do que deveria. Peço que perdoem por perderem tanto tempo de vocês. Mas fomos nós que o procuramos! O caso do senhor nos foi reportado como uma cinefilia quase assintomática. Cinefilia indolente, corrige o Dr. Empáfia, emendando: corre à boca miúda que o senhor nem gosta tanto de filmes assim!
A.A. aspira profundamente e, num meio sorriso, despeja as palavras aliviadas de quem é desmascarado: pode ser verdade. Penso sobre isso, de vez em quando. Que talvez eu goste mais de escrever sobre os filmes do que deles por si só. Que é provável que eu use o cinema como desculpa. É possível que isso seja verdade, ou pelo menos, uma meia-verdade. Mas é também verdade que quando escrevo — seja no papel, seja dentro de mim (porque há escritas que nunca veem a luz da tela ou do dia) —, faço pelo prazer desse exercício em que me encontro enquanto reencontro o filme. Cada filme. Um pedaço do que vi com um pouco de mim. Então… talvez. Sei lá. O que quero dizer é: e daí?
Sacrilégio, grita um cinéfilo de jaleco, enquanto A.A. dá as costas. Antes que o paciente saia, não me contenho e pergunto se podemos registrar que A.A. não considera sua condição uma doença. Sinto-me tão saudável quanto o clichê mais vivo do que nunca. O que vai ver quando chegar em casa? Digimon.
Prognóstico: considerando que a condição se adapta e se desenvolve a depender do organismo, é preciso um acompanhamento caso a caso. Verifica-se, porém, que nos casos em que a condição encontra um equilíbrio quanti e qualitativo e uma homeostase entre paixão e lucidez, ela tende (apesar da confusão mental e da prolixidade) a ser uma anti-doença, uma vez que lança sentidos e cognições em direção a outras formas de vidas. Quando essas vidas afinam a condição ao organismo, é comum que os pacientes tenham uma curiosidade sintomática pelo mundo em suas múltiplas faces. Em casos em que condição e organismo concorrem, a cinefilia pode converter-se à cinefagia, tomando o organismo como máquina de acúmulo e ignorando poderes de síntese e antítese. Nesses casos em que a cinefilia muda para sua forma bancária, olhos vermelhos, lapsos de memória moderados, compulsão pelo contar matemático e esvaziamento do recontar (narrativo) são sintomas recorrentes. Salienta-se que, apesar das possíveis gradações e nuances, a condição, em sua melhor forma, incita vida aos olhares e olhados, enquanto em sua vertente grave, trata vidas, generosamente iluminadas e expostas, como coisa morta.