Por Álvaro André Zeini Cruz
*Este texto foi escrito à turma de Produção Audiovisual 2015 da FIB, em razão de sua formatura. Coloco-o aqui pois acredito nele sintetizar vários dos meus pontos de vista como educador.
07/12/2015
Inicio minha fala com uma passagem de um dos meus cineastas preferidos, Éric Rohmer: “O que é filmar? É saber onde pôr a câmera e saber quanto tempo ela ali ficará”. Dito assim, até parece fácil. Se fosse, não estaríamos aqui. O plano – unidade mínima da imagem em movimento –, em inglês, é chamado de shot, que pode também traduzir-se como tiro. Faz sentido, pois a câmera é uma espécie de arma. Não uma arma convencional, que aniquila as pulsações, mas uma arma às avessas, capaz de registrar desde os fenômenos mais espetaculares às mais ínfimas nuances do mundo. Em suma, uma arma que registra a vida, faz dela um decalque – a imagem.
Imagem que em 1895 adquiriu movimento e causou assombro. Em um dos primeiros filmes dos irmãos Lumière, a inexperiência diante do plano da locomotiva que avançava em direção à câmera provocou alvoroço – permaneceria o trem contido na bidimensionalidade da tela ou ele extravasaria sobre a plateia? O cinema surgiu, portanto, desse misto entre espanto e fascínio. Hoje, disseminadas em janelas variadas – televisões, computadores, tablets, smartphones –, a cinética das imagens dificilmente encontra esse tipo ingenuidade, justificável àqueles olhos ainda não violados pela ilusão da tela, entretanto, continua agindo na ordem do encantamento, que, creio, lhes é vital.
A essência da imagem em movimento, sonorizada desde o final da década de 1920, está no maravilhoso; está em pegar a matéria-prima do mundo e retrabalhá-la dentro da moldura delimitadora do quadro de forma hipnótica. Que fique claro: a vida que ocorre na tela não é a realidade, mas um recorte minuciosamente talhado e transformado. Trata-se, portanto, de um outro mundo, mas que mantém vínculos indissociáveis com o real, pois há em frente ao olhar privilegiado da câmera sempre uma presença, um corpo, uma matéria palpável cuja existência é captada e metamorfoseada. Alicerçado nas palavras do roteiro, esse mundo, cuja mágica está em esculpir a mais implacável das existências – o tempo –, é erguido e organizado por produtores, diretores de arte, fotógrafos, figurinistas, captadores de som, editores, mixadores, entre tantos outros profissionais de uma equipe que tem como ponto convergente o diretor.
Pelas palavras ditas até aqui, percebe-se que a composição de uma imagem e de um som passa a largo da simplicidade. Somos ilusionistas transmutando o real, e, desta forma, possuímos a mesma responsabilidade do mágico que serra um corpo ao meio. “Os travellings são uma questão de moral”, diz a célebre colocação de Godard, que quando a fez referiu-se não só a esse determinado movimento de câmera, mas às panorâmicas, closes, plongées, contra-plongées, enfim, a todas as escolhas formais que nos são impostas a cada minuto de uma produção, incontornáveis e inseparáveis das de conteúdo. Ética e estética são um só corpo, como nos lembra Rivette ao pontuar: “fazer um filme é mostrar certas coisas, é ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostrá-las por um certo viés; esses dois atos são rigorosamente indissociáveis”.
Para compor as texturas das imagens e dos sons – superfícies que nos fazem imergir nas inúmeras camadas de uma obra até que atinjamos sua alma – é preciso antes refletirmos sobre nossos próprios olhos, e, consequentemente, também sobre nossas almas, considerando que os primeiros são janelas para os segundos, como propunha Edgar Allan Poe. Ou seja, antes de provocarmos os olhares alheios, é preciso colocarmos em xeque os nossos olhares. Como professor de vocês, este sempre foi meu objetivo: que saíssemos do costumeiro púlpito entre mestre e aluno para que juntos embarcássemos nessa jornada reflexiva sobre como enxergamos as janelas que dão para o mundo. Rota essa de mão dupla, já que o aprendizado sempre me foi retribuído nas perguntas, nos debates, mas, principalmente, sempre que via a curiosidade e o encantamento de vocês diante de um filme trazido à aula. Para quem ama o cinema, o audiovisual, nada mais emocionante do que assistir a paixão permanecer imanente em olhos que, ao mesmo tempo, vão sendo impregnados pela lucidez do conhecimento.
O carinho se acentua por outro motivo: vocês, para mim, serão guardados como a primeira turma em cuja sala de aula coloquei os pés não só como aluno, que permaneço sendo, mas como professor. Como professor, digo: às quartas e sextas, na sala B-24, uma experiência análoga à cinematográfica acontecia – suspendia-se o tempo e juntos desbravávamos mundos que não eram, mas tornavam-se nossos. Mundos de Hawks, Hitchcock, Cameron, Spielberg, Rohmer, Shyamalan, Kurosawa, Naruse, Brisseau. Mundos hipnóticos que remontavam os primórdios do audiovisual: a magia cinematográfica defendida lá atrás por Méliès, em 1902, e que, reafirmo, me parece vital. Por fim, como colega de profissão e amigo de jornada, desejo que vocês não simplesmente componham audiovisual, mas que cada plano por vocês composto esteja impregnado de magia. E que essa magia tenha sempre a potência de extravasar os filmes e atingir o mundo aqui fora, para aí sim fazer a diferença.