por Álvaro André Zeini Cruz

Olavo Bilac (Carlos Alberto Riccieli) não é um poeta parnasiano, mas um médico legista que vem de Los Angeles – a cidade dos sonhos – a Brasília, capital projetada para ilusionar uma modernidade. A tarefa de Bilac é assinar um laudo pronto, reconhecendo um cadáver como o de Eugênia (Karine Carvalho), uma economista que assessorava políticos. Estes, no entanto, atribuem o crime ao namorado da moça, o cineasta Augusto dos Anjos (Michel Melamed). Ao longo do filme, a classe política repete: a culpa é do cineasta.
Ainda a bordo (sobrevoando a cidade-avião), Bilac vê a esposa (Bruna Lombardi) sentada na poltrona ao lado, nua. Trata-se de uma aparição que explicita o luto recente (e trágico), bem como o trânsito desse sujeito entre figuras cujas realidades são incertas. Fantasmas? Alucinações? Fato é que o legista está vivo, como pontua (sem qualquer tato) a femme fatale corporativizada de Malu Mader, para quem a viuvez é a continuidade da outra parte, que, mais do que viva, está livre. Filha de um político corrupto de frases prontas (Carlos Vereza como o anti-senador Caxias), Georgesand (Mader) também não é uma romancista, e sim mais uma das caricaturas indiscretas (com nomes de literatos) que atravessam o caminho de Bilac.
Mas o discurso da liberdade é uma mentira; ao menos numa cidade tão plana, tão aberta. Bilac, que prefere os mortos, tem pouco tempo a sós com os de lá, pois há sempre alguém em seu encalço do lado de cá: políticos, assessores, motoristas, capangas, a jovem prostituta que invade seu quarto de hotel. Quando Bilac se desvencilha dela (que aparenta ser menor de idade), a menina mergulha o rosto num intrincado chiaroscuro para pedir “moço, será que o senhor pode me emprestar a Bíblia?”.
Nelson Pereira dos Santos faz um filme sem preparos, com diálogos duros e situações improváveis, entre bizarrices e barbaridades. Trata-se não de um desleixo, mas de um projeto fílmico em sintonia com o espaço da cidade projetada. Se os abismos em Brasília 18% são cavados pela iluminação fotográfica – e, por isso, são ilusórios –, é porque o terreno em si é plano, bem como os personagens que o estendem em trânsito. Trânsito porque, para o cineasta, Brasília é capital de exploração e não de povoamento. Resta a Bilac passar por esse platô sonhado e partir para sonhos mais enredados, voltar à Los Angeles.
Nelson faz seu filme lynchano num espaço que concorre, não colabora. A cidade fantasiada acaba num pesadelo planáltico e cerrado. Nem as elipses de Nyemeyer dão jeito a um lugar em que nada é o que parece justamente porque tudo é muito aparente; as contradições, inclusive (como lembra Edson Nery da Fonseca – em passagem do livro de Pedro Meira Monteiro –, “Nyemeyer gosta de morar numa casa estilo colonial” na Park Way). No fim, talvez não seja tão ilógica essa aventura de um legista parnasiano em busca das minúcias de um crime numa cidade que, abertamente, esconde os detalhes. Ao tentar dissecar o coração das nossas distopias, o médico movido pela curiosidade por corpos mortos, dá de cara com o concreto dessa utopia mal alicerçada, um verniz escorregadio sobre o Planalto Central. A única conclusão possível é aquela apontada pelos políticos da trama: a culpa é do cineasta.