Bonner burnout

por Álvaro André Zeini Cruz

No Brasil, a realização de um projeto de integração nacional passa pela modernidade televisiva. Das tapadeiras imparciais ao background em CGI, da bancada platinada ao globo terrestre com aspecto high-tech, o Jornal Nacional – cujo nome explicativo lembra o ineditismo de um jornal transmitido nacionalmente (um projeto/patrocínio da ditadura) – consolidou-se nessa cenografia de espaço-nave, que viaja pelo país ilustrando esta velha colônia sob as janelas da modernidade. No formato do telejornal, entre âncoras e reportagens, imagens icônicas costumam sintetizar os temas tratados; nos anos do lawfare lavajatista, o noticiário político teve como background a recorrência de canos digitais desaguando dinheiro. Um ícone disseminando diariamente uma ideia: a política é o esgoto.

Em seu livro Sintomas Mórbidos, a socióloga Sabrina Fernandes defende que o Brasil da última década tem vivido entre a pós-política e a ultra-política; enquanto a primeira produz um esvaziamento da política a partir da neutralização de antagonismos e sujeitos, a última acentua autoritarismos que se valem do ódio, do medo e da propagação de maniqueísmos. Não é novidade que os canos expostos como veias abertas indevidamente na cenografia limpa e tecnológica do Jornal Nacional colaboraram para este cenário. Diariamente, brasileiras e brasileiros estiveram sob essa iconografia associativa de corrupção e política, que não só restringe a corrupção a uma única esfera, como trata-a não como sintoma de um corpo historicamente complexo, mas como doença inexplicável a ser exterminada, mesmo que para isso se extermine o próprio corpo. E se esse jornalismo-nave, imageticamente lustrado e imparcial, passou os últimos anos produzindo flares e fumaça nos olhos diante das telas, foi o olhar de William Bonner que pareceu especialmente difuso e cansado no último debate presidencial de 1° turno.

Viralizaram as imagens de um impaciente William Bonner tendo que lidar com esse mosaico das despolitizações encarnadas, convidado aos estúdios Globo na última quinta-feira. Os momentos mais explícitos de contrariedade ocorreram por conta do “candidato padre”, a quem Bonner teve que tratar como criança que fez arte: “o senhor poderia olhar para mim, respeitosamente?”, ralhou o jornalista, cuja profissão é, provalvelmente, execrada por essa prótese cristã bolsonarista. Fantasiado, “Padre” Kelvin, Kelson, Kelmon transformou o debate em farsa ao servir de escada a Jair Bolsonaro; com suas bravatas brochadas por causa do desespero pelo voto indeciso, o candidato da extrema-direita e da ultra-política acovardou-se, escalando candidato de festa junina como laranja. Não era o único fantasiado: havia o coach da Faria Lima embotocado de candidato, a presidenciável que vira onça para virar meme, o ex-político perdido na função de flertar com ultra-política, mas que permanece no papel que o persegue – o de candidato à espera, talvez para sempre. Desnorteado e abatido, é provável que Bonner tenha percebido que o que sobrara da política ali era a candidata da direita, Simone Tebet, e o ex-presidente Lula, o mesmo que a nave do Jornal Nacional tentou devorar entre canos. Mas como em Não! Não olhe!, a nave não digeriu/derrotou, devolveu o arqui-inimigo ao jogo e agora tenta uma reconciliação à base de “meas culpas” – a boa série sobre a Constituição Cidadã, a frase “o senhor não deve nada à justiça”. Mais contundente do que a bronca, foi o momento em que, cansado, Bonner desviou o olhar de Lula e Kelmon, encarou o próprio púlpito e fez um gesto negativo com a cabeça. Talvez, ali, tenha pensado “o que foi que fizemos?”.

Bonner descobriu aquilo que o excelente podcast do cientista político Cláudio Couto avisa desde o título – “fora da política não há salvação”. Depois disso, teve um burnout.