Beetlejuice, Beetlejuice

por Álvaro André Zeini Cruz

Tim Burton sai da Disney, mas a Disney está em Tim Burton. Ou melhor, o parque, o brinquedo, o “Cinema de atrações” está Tim Burton, e como nunca. Formulada por Tom Gunning, a ideia de “Cinema de atrações” é associada ao início do cinema, quando as chamadas “vistas” visavam, justamente, encantar o público pela magia (técnica e tecnológica) da imagem em movimento, antes de haver qualquer proposição narrativa. Priorizava-se, portanto, o valor espetacular do cinema que, nos Vaudevilles, por exemplo, despontava entre outros espetáculos. Um cinema de circo e de parque, menos preocupado com a capacidade de contar histórias do que de fascinar.

Em maior ou menor grau, a atração sempre esteve, em Tim Burton, sujeita à narrativa. A contação em si esteve no centro de sua passagem mais recente pela Disney, quando Burton colaborou com a onda dos live actions adaptando dois clássicos da animação — Alice e Dumbo. Ainda que longe de sufocarem o estilo de Burton, são filmes que estão também far, far away de Sweeney Todd, seu último grande trabalho. Pelo menos até essa sequência de Os Fantasmas se divertem, em que Burton propõe um filme trem-fantasma no espaço labiríntico de uma casa de espelhos (com reflexões caligaristas). O frescor, no entanto, está num certo drible da narrativa, que emerge sob um classicismo démodé para, depois, tornar-se mera desculpa ao tour delirante que se serpenteia. Ah, este não é um filme sobre a casa mal-assombrada em si, mas sobre seus alicerces e todo o magma de criaturas que Burton consegue criar.

Existe trama, mas só para que se chegue aos trilhos, percorridos por vagões giratórios, que propiciam um passeio de vistas fantásticas em 360°. Aliás, antes de se consolidar estilístico, o labirinto começa pela narrativa, introduzindo conflitos tangentes que, por sua vez, serão transitados em paralelo. A noiva cadáver vivida por Monica Bellucci, por exemplo, inicia sua caçada ao ex-marido Beetlejuice (Michael Keaton), mas essa mesma plot abre também caminho (quase completamente paralelo) ao personagem de Willem Dafoe. Detetive de duas faces (como o vilão de Batman, o não dirigido por Burton), Wolf Jackson (Dafoe) rejeita repetidamente a da representação em prol da verdade — é um ator interpretando um detetive —, mas, também reiteradamente, lembra que o que importa é parecer autêntico — ou seja, volta a discursar sobre a representação, introjetando a matriz de Burton: a laço entre verdade e aparência, seja do que é físico ou do metafísico que o cinema transmuta em matéria.

Se a trama dos mortos é acesa por uma promessa de vingança, entre os vivos, Lydia Deetz (Winona Ryder) herda fantasmas do passado (incluindo a casa e a madrasta, revivida por Catherine O’Hara) além de outros bem presentes, como o noivo interesseiro interpretado por Justin Theroux (numa escalação que parece se aproveitar da presença dele em outro delírio; em Cidade dos Sonhos, de Lynch). Enquanto isso, a filha Astrid (Jenna Ortega, escolha óbvia para o papel) cai na cilada de um fantasminha não tão camarada. A questão é que todas essas tramas servem apenas para transportar os vivos ao subterrâneo dos mortos. Uma vez lá, Burton os embarca num passeio desvairado por esse labirinto que desemboca em passados, do cinema e das próprias imagens do cineasta. E apesar da nostalgia ser um dado, Beetlejuice, Bettlejuice não é exatamente um filme nostálgico, porque olha para trás sem construir a noção do passado, do tempo. Pelo contrário: o filme se levanta dos mortos acreditando piamente ser possível fazer presente um cinema de outro(s) tempo(s); cinema, de um classicismo de primeiros atos extensos, de uma progressão que não titubeia em livrar-se dos excessos da narração, inclusive da causalidade e da catarse. Um cinema de mortos-vivos fascinados e fascinantes.

Se o clímax de Crianças Peculiares soava frustrante graças a uma catarse mal ajambrada, aqui não há possibilidade de desapontamento, já que o momento decisivo não é a convergência entre as tramas, mas aquilo que antecede esse instante (quase literalmente) — a cerimônia ciceroneada por Beetlejuice. É esse o momento em que os corpos se contorcem nas coreografias artificialmente marcadas, em que a música desponta numa autoconsciência irônica, em que o trem-fantasma revela que sua aptidão não é o susto, o solavanco ou o frio na barriga, em que Keaton se diverte como nunca. Nesse sentido, o intuito e talento da atração é a produção espetacular, sem perder de vista de que, no espetáculo, os sentidos estão absortos e extasiados, mas o corpo permanece a salvo. Se as ameaças e deadlines são um engodo, é porque não faz sentido — ou pelo menos não causa compaixão — a farsa de uma morte além da morte. Se um sujeito abocanhado por um tubarão pode circular com o que resta da cintura para baixo (esguichando sangue pela aorta), não há o que temer, só o que olhar. Burton sai da “fôrma” para mostrar um filme em “fórmas” (e em forma), curiosamente sem se desvencilhar desse espaço que o tem assombrado — o parque, que estava em Dumbo, em Crianças peculiares, mas, sobretudo, na sujeição a Disney. 

Mas nem só de mortos vivem os filmes de Burton: é no andar de cima, sob o sol que banha um cemitério, que ele congrega seu universo de contrastes em fotogenia pura num plano específico de Winona Ryder: a franja negra e repicada tombando imóvel sobre o rosto, enquanto os cabelos presos balançam sobre a nuca, os fios cintilando sob a luminescência amarelada, vivos sob essa luz que pode tocar. Em uma única imagem, Ryder é Edward e Alice, é o chiaroscuro mais pulsante de Beetlejuice. Burton encontra beleza na Terra e abaixo, no grotesco submundo dos mortos. Exibe-a nesse filme-atração, trem-fantasma que reaviva aparições como se elas nunca tivessem partido. Aliás, justamente, um trem, atração cinematográfica primordial de espanto e encanto. Afinal, Os Fantasmas ainda (se) divertem.