Barbie

por Álvaro André Zeini Cruz

Em 2001: uma odisseia no espaço, a aparição de um monolito marca o início da transição entre as espécies; na sequência nomeada como “Dawn of man” (“Aurora do homem”), um macaco usa um osso (seria um fêmur, osso sobre o qual se sustenta nossa condição de bípedes?) para estraçalhar uma ossada animal, demonstrando aptidão para transformar o órgão numa ferramenta rústica. Então, esse “martelo” é lançado para produzir uma das mais conhecidas elipses da História do cinema — aquela que transforma o osso em satélite. Nesse hiato, estão as evoluções (da anatomia, mas, sobretudo, do cérebro) e a História da racionalidade. 

Em Barbie, a sequência de Kubrick é revisitada, e o monolito, substituído por uma versão gigantesca do primeiro lançamento da boneca. Sob essa versão, encarnada por Margot Robbie, as meninas ao redor destroem seus bebezões de porcelana e, consequentemente, a brincadeira que, desde os primórdios lhes era imposta — serem mães. Nesse prólogo — que abre uma série de referências cinematográficas —, Barbie chega para libertar as garotas da brincadeira que o patriarcado induz à papel vital. Uma epifania que resulta como possibilidade à polivalência de papéis. Mas o diabo mora nos detalhes, e Robbie reproduz o olhar altivo, pedante, da Barbie datada dos anos 1950, seguido de uma piscadela dúbia, que abre a brecha — quais os papeis destinados a essa boneca?

Eras depois, estamos na Barbielândia, um mundo de plástico cor-de-rosa regido pelo brincar — Barbie não desce as escadas, pois as mãos invisíveis da brincadeira a fazem flutuar de um pavimento a outro. É num microcosmo em que o american way of life se reproduz sob um estilo aparentemente camp (mas só aparentemente) que vivem as Barbies e os Kens (e Allan); a longa sequência de apresentação desses personagens demonstra, a um só tempo, que estamos na contemporaneidade (com Barbies pretas e gordas, inexistentes nas primeiras décadas da boneca) e num universo moldado pela publicidade. Nessa vizinhança alegre (mas com a paleta de cores do subúrbio de Safe, de Todd Haynes), feita de casas vazadas, um cinema anuncia “O Mágico de Oz” e, quando Barbie passa pelo local de carro, vê-se atrás dela um pôster com o rosto do Homem de Lata.

A Barbie de Gerwig retoma — às avessas — a história adaptada por Victor Fleming: tragada por um tornado, Dorothy é levada a um reino encantado onde encontra um trio inusitado de companheiros — um espantalho (que precisa de um cérebro), um leão (que precisa de coragem) e um homem de lata (que deseja um coração). Na jornada em busca pelo tal mágico (que se revela uma farsa), Dorothy é presenteada com sapatinhos vermelhos capazes de fazer magia nos momentos de apuro. O filme de Gerwig também transitará entre mundos, mas a passagem entre eles não se dá por um passe de mágica, mas por um conjunto de procedimentos e transportes. Para migrar de um mundo a outro, Barbie tem que respeitar a ordem dos veículos, para só então adentrar o mundo real, reduzido a empresas, escolas, lojas e delegacias.

Barbie descobre logo que o mundo real tem poucos fascínios; por outro lado, Ken vê nos arranha-céus (e bíceps) seus obelicos (e a ele basta ver, não é preciso tocar, verificar a materialidade), e contrabandeia um conjunto de próteses e extensões simbólicas rasas para manter-se no fetiche (no sentido de negação da castração, algo que Ken fala em cena). Se o conflito inicial envolve Barbie tentando restabelecer sua condição de “versão estereotipada”, se adensa nesse golpe capitaneado pelos Kens e na pela perseguição dos executivos da Mattel. Nesse sentido, Gerwig ridiculariza não só o patriarcado, como as representações do patriarcado pelo cinema; não à toa, Ken transforma a casa de Barbie num saloon. É a resolução simultânea desse duplo patriarcado (dos bonecos e dos empresários) que potencializa a conciliação como valor fundamental do filme: quando se espera que, depois do patriarcado, Barbie irá encarar o capitalismo, a conciliação com um já serviu ao outro (talvez porque sejam duas faces de uma mesma moeda). É preciso, no entanto, examinar essa conciliação, que acontece, mas pode não ser o que parece.

Se Barbielândia é a reprodução (em plástico e consumo) do mundo real, é também um refúgio imaginário em que as forças patriarcais são regidas pelas bonecas, que, porém, se contentam com essa realidade ilusória, alicerçada e acabada na superfície e na visualidade (comportamento contrário à curiosidade por um saber profundo, que Laura Mulvey denomina “epistemofilia”). Essa questão se aprofunda na recordação de que Barbielândia é regida pelo brincar das crianças; um brincar que se resume às cansativas repetições de “Hi, Barbie” e “Hi, Ken”.

Gerwig encampa um discurso antipatriarcal evidente (e importante), mas que repete (Hi, Barbie! Hi, Ken!) um antipatriarcado agendado pela indústria cultural — aquele que, entre imagens e realidades, negocia sem permitir revoluções. No entanto, algo ainda mais intrincado se desdobra: o mundo real que Barbie encontra é tão raso quanto a Barbielândia, dominado pelas racionalizações dos lucros (o CO da Mattel logo muda de ideia quando o contador faz um cálculo) e dos discursos (dominantes ou negociados). Um mundo em que o cérebro — órgão desenvolvido na elipse de Kubrick — prevalece tiranicamente sobre o coração, esse emaranhado muscular pulsante que o Homem de Lata recebe como recompensa ao final de Oz.

Assim, se a magia em Barbie é restrita, é porque tem faltado ao mundo coração; dessa correlação falha entre cérebro e coração, suprime-se a imaginação. Se as Barbies deveriam ser mais interessantes nas interações lúdicas do brincar — abrindo-se ações, especulações e histórias —, ganham autonomia apenas em suas individualidades burguesas (dentro dos papeis atribuídos). Soltas da imaginação, restringem-se ao tecido social das brincadeiras burocráticas (Hi, Barbie! Hi, Ken!), que resultarão em adultos preocupados com procedimentos, padrões e produtos. Nesse sentido, as corporações podem até rir de si mesmas (as sonegações de Ruth Handler, o CO de Will Ferrel), desde que isso não abale essa tríade, nem o estado pragmático (e produtivo) das coisas. De preferência, criando uma atmosfera cordial (do coração) que embace as ferramentas, as linhas de produção e monolitos racionais/cerebrais. Nesse trânsito em que pouca coisa é genuína, a autenticidade volta à libertação do prólogo — a maternidade.

A maternidade ressurge como uma dicotomia: se o prólogo liberta as meninas da farsa materna (dos bebezões), Barbie vai descobrir uma maternidade libertadora, que emerge das lembranças de uma Mãe (América Ferrera) acerca das brincadeiras com a filha. É essa Mãe (regredida à infância) quem decide suspender a racionalidade ordinária dos dias; e é o tolhimento dessa maternidade criadora e compartilhada que instaura a crise inicial. A Mãe oferece à filha um ato de amor em extinção ­— o tempo para a imaginação. Não à toa, nenhum close de Robbie é tão desconcertante quanto aquele de Ferrera, feito na primeira vez em que ela e Barbie se veem. Adiante, essa maternidade será desfeita: quando Ken acusa Barbie de vê-lo sob o male gaze (de Mulvey), ela prontamente aciona um olhar altamente empático, maternal, como diz Tania Modleski. A questão é: trata-se de um olhar genuíno ou do olhar que se espera dela?

Nessa culminância conciliatória, o discurso de Barbie serve tanto para Ken quanto para os empresários vorazes (que, calculadamente, parecem mais bobões do que vorazes). Fato é que, nesta esteira de conciliações em que tudo se resolve nos diálogos, nada, em nenhum mundo, parece genuíno — e isso me parece proposital. Gerwig discursa contra o patriarcado, mas o que seu filme mostra é um mundo que sucumbe, da produção das matérias aos discursos reproduzidos. Para criar esse mundo de plástico, com menos coração do que o Homem de Lata, a cineasta olha para a Hollywood ao redor; esta que viveu os últimos quinze anos à base de hominhos de brinquedo, piadas autocentradas e frases de efeito. Não faz um filme camp, porque o camp demanda uma inocência já perdida, um valor genuíno que talvez só esteja no close de Ferreira e na última frase de Robbie (e Barbie foge para não ser mãe de Ken, para “aprender” a ser mulher com outra mulher, aquela que a enxergou entre a verdade e fantasia). Tem, sim, uma epifania maneirista (e amaneiriza o cubículo de Playtime, como se ali trabalhasse o protagonista de Gremlins), isto é, a consciência de que chegou tarde, de que, do coração da indústria, não pulsarão mais filmes intrusos ou pequenos revolucionários, como Gremlins, Pequenos Guerreiros ou Edward, mãos de tesoura, filmes que poderiam ser seus irmãos (mas não são; não à toa, Joe Dante foi rechaçado por Hollywood, e Tim Burton, absorvido pela Disney). Apesar do movimento, é tarde inclusive para ser maneirista (até porque a maleabilidade do plástico faz com que ele ceda facilmente às torções). Admitida no coração da indústria, Gerwig constata que, em termos como “indústria criativa” e “economia criativa”, a ordem das palavras é respeitada — a criatividade está submissa aos processos e lucros. Ao deparar-se com um mundo sem coração, transforma seu filme em uma Barbie de Lata (antes da magia-recompensa): faz o que pode para encantar (ou distrair) com o polimento as superfícies, mas arranca o coração das entranhas. No lugar, injeta cinismo. Furada a fofura de Barbie, pode-se sentir a corrosão das substâncias, o amargor, a ferrugem.

Greta Gerwig planta uma Barbie de Tróia para denunciar a obsolescência de Hollywood, mas, pelo filme que faz, sabe que são grandes as chances de Hollywood não perceber.