Bandeirinhas sob a boca (pixels em LED, 2025)

por Álvaro André Zeini Cruz

Quando Assis Chateaubriand contrabandeou televisores como se fossem geladeiras para inaugurar sua TV Tupi, provavelmente, não imaginava a captação de imagens aéreas de São Paulo através de drones. Tampouco poderia imaginar a recorrência dessas imagens nas cercanias do museu por ele idealizado, o Museu de Artes de São Paulo, inaugurado em 1947. Entusiasta das belas-artes, o Cidadão Kane destas terras foi contemporâneo e próximo à eclosão do modernismo no Brasil, movimento materializado também no projeto arquitetônico assinado por Lina Bo Bardi para o MASP.

Em 7/09/2025, o MASP abrigava uma série de exposições relacionadas à temática ambiental. A natureza imponente — em quadros exuberantes — da dominicana Hulda Guzmán, as esculturas arbóreas de Frans Krajcberg, e “a ecologia de Monet”, exposição mais visitada da história do museu, que faz uma curadoria das obras do impressionista francês que têm a natureza como forma. Tudo isso posto sobre ou sob o vão projetado por Bo Bardi como um espaço de convivência, como fresta arejada planejada para abrigar as pulsações humanas que colocariam em circulação as obras de arte (pois a arte circula dentro e entre seres humanos). Mas, assim como Chateaubriand não deve ter imaginado drones sobre a Paulista, Bo Bardi não deve ter suposto que, num Dia da Independência do Brasil, os vidros espelhados do MASP estariam destinados a refletir uma bandeira alheia, de outra Pátria.

É verdade que as cores do lado de fora remetiam também a um imaginário natural, mas estampavam o Dri-fit, tecido artificial que, como informa o site da Nike, foi desenvolvido para absorver e evaporar o suor, “ajudando a manter você seco e confortável”. É também verdade que não há garantias de que todas as conhecidas camisetas da CBF tenham sido compradas pelo valor de R$ 359,99; é provável que uma ou outra tenha vindo da 25 de março, rua usada como boi-de-piranha às sanções recentemente impostas pelos Estados Unidos. De qualquer forma, um pontilhismo verde amarelo ocupava o cinza do asfalto, com frouxidão o bastante para que a forma revelasse o fundo. E foi dessa turba de Zés Cariocas-paulistanos, costumeiros vociferadores de que a bandeira jamais será vermelha, que se estendeu, pasmem, o pano em listras vermelhas e brancas. O contraste é, antes de tudo, formal: se o amarelo se distribuía em pontos, a bandeira dos Estados Unidos se erguia maciça sobre as cabeças e mentes de quem pedia uma recolonização; alguns por falta de conhecimento histórico, outros, por excesso, por crerem na chance de, um dia, quem sabe, tornarem-se os capitães donatários que redefinirão definitivamente as fronteiras entre si e os capitães da areia.

Mas voltemos às imagens, mais especificamente às estrelas, que fazem uma transição medida, fabril, entre o pontilhismo verde e amarelo aleatório e as listras impositivas, que, na fotografia mais interessante (acima), acabam, justamente, nas barras da faixa de pedestre que interliga o verde (das tantas telas internas) do MASP e o verde (externo) do Parque Trianon. Marcação civilizatória, a faixa de pedestres é a linha menos ocupada pela turma do “passar a boiada”. É também o que liga a bandeira estadunidense a um conjunto de paralelas e perpendiculares ainda mais robustas. No trânsito do olhar entre a bandeira que celebra a sabujice a Donald Trump e o Museu de Artes de São Paulo, é possível vislumbrar outro retângulo (mas para vê-lo de fato, é preciso atenção). Entre o céu de brigadeiro “ameripano” e o vão de convivências, há uma diminuta bandeira brasileira, cuja conotação sugere não só o tamanho do patriotismo, como também uma noção de lugar no mundo.

Pela foto, pode-se inferir que a multidão estendida sob os panos se elabora entre sujeições, colocando-se, simbolicamente, entre o símbolo de pronta interpretação e o prédio, cujas imagens internas requerem e propiciam olhares múltiplos. Pois se a arte impõe alteridade, do lado de fora, o outro é uma multidão, que marcha em prol de um (mas, ironicamente, ocupando a rua, o espaço público), crente na única cultura que lhes é possível — o consumo. O contrassenso de reunirem-se diante do MASP se complexifica quando lembramos que o modernismo emerge na cidade como uma espécie de paliativo contra o ressentimento de uma São Paulo provinciana, ainda em vias de se modernizar; como nos lembra Renato Ortiz, é nesse processo que a cidade foi induzida a crer em si como motor do resto do país, capital daquele que é (supostamente) o principal estado, Estado Ungido do Brasil. Ortiz (e tantos outros) também lembra que a modernidade brasileira é incompleta, uma vez que foi assentada a partir de uma tradição colonial, sem nunca romper completamente com ela. Crendo-se locomotiva do Brasil, os modernos paulistanos friccionaram o símbolo consumido/consumado e o ícone incompreendido, marchando pela raiz, pela colônia, pelo direito de subalternizarem-se para subalternizar um outro. Compuseram imagens fadadas a viverem nos livros de História (e é por isso que privilegio, neste texto, o pretérito imperfeito); imagens de quem, sem se dar conta, morreu na contramão atrapalhando o tráfego. 

No extracampo desses 40 mil pontos (que, certamente, têm diferenças, mas grita em uníssono), há, no entanto, uma cidade de milhões, feita de pluralidades e contradições. Na moldura da imagem feita a pino, a bandeirola brasileira (se perguntados, dirão tal como se aprende na escola: florestas, ouro…) não é párea ao tapetão americano, que tange a faixa de pedestres. A mesma faixa que desemboca nas paralelas contundentes, cortadas pelas duas vigas vermelhas, todas guardando o vão, a boca do prédio icônico e contraditório, aberto e inacessível, moderno a ponto de conter ali passantes de uma elite cultural e pedintes de uma cidade que tem outra cidade só em população de rua. Que essa boca imagética ouça Oswald; que mastigue o verde e amarelo bem delineados e faça, de um vez por todas, uma antropofagia completa, vomitando um Brasil de nuances e contradições a serem encaradas, para que a modernidade seja radical no sentido de combater os problemas desde a raiz. Porque, ao contrário do que dizem os herdeiros midiáticos de Chateaubriand, é sim uma questão de ricos contra pobres, brancos contra pretos, hegemônicos contra subalternizados.

Dentro do MASP, na pintura “A Canoa sobre o Epte”, duas jovens fazem um passeio idílico numa canoa. A que está sentada na proa olha para a que rema e pergunta:
— O que será essa algazarra toda?
A que rema olha para o extracampo e vislumbra, pela janela do MASP, o pontilhismo verde & amarelo raivoso, assim como o branco & vermelho flamulantes, todas cores impressas em tecidos artificiais. De longe, ouve-se o falsete de um suposto líder religioso, que deixa a moça com os remos com um frio na espinha. Ela dobra os esforços e responde:
— Não sei; melhor remar para longe.