por Álvaro André Zeini Cruz

Em janeiro de 2012 eu estive na Mostra de Tiradentes, um dos três festivais de cinema organizados pela Universo Produções e realizados em Minas Gerais. Era a 15ª edição do que já era um evento nacionalmente reconhecido e consolidado, e que, mais do que seus festivais-irmãos (os de Ouro Preto e BH), tinha uma personalidade muito própria: uma curadoria que sintetizava – e reverberava – tendências de um cinema nacional disposto a experimentações. Além disso, diferente de muitos festivais em que o cinema preenche alguns espaços urbanos, o que acontecia em Tiradentes era uma verdadeira tomada daquela cidade histórica visualmente parada no tempo, mas com as praças, hotéis, bares e restaurantes movimentados pelos filmes e pelas conversas sobre filmes. Eu estava ali com um curta-metragem infanto-juvenil, que havia co-dirigido com um amigo no ano anterior, mas me lembro que estar em Tiradentes aos 23 anos, com um filme cuja duração era inversamente proporcional a minha timidez, foi uma experiência tão extasiante quanto intimidante.
Volto agora, em 2021, “efetivamente” ao festival. Claro, não como corpo presente na cidadela histórica, mas como olhar diante da tela cedida por mim ao evento, que aconteceu entre os intervalos das rotinas do trabalho e da casa (que na pandemia tornou-se uma coisa só). Como muitos dos festivais tem feito desde o ano passado, a Mostra de Tiradentes aconteceu online, assumindo os prós e contras que essa experiência impõe.
Os prós dos festivais online acho que são bastante óbvios: o acesso aos filmes fica irrestrito à geografia, disponível na internet para que o público veja na tela que bem entender (ainda que as plataformas tenham certa instabilidade com espelhamentos de tela, o que dificulta um pouco de ver os filmes na televisão). Nesse sentido, há um notório movimento de democratização das obras (o que não significa que o festival tenha expandido os nichos do público). O prejuízo, também evidente, é a ausência da arquitetura e do ritual cinematográficos e, mais ainda, da imersão turística que festivais como Tiradentes propõem: a experiência de parênteses na rotina para que se acompanhe o evento.
Nesse sentido, meu passeio pela Mostra de Cinema de Tiradentes foi breve, com os filmes intercalados entre os afazeres e aulas a serem ministradas ou preparadas. Ainda assim, os quatro longas vistos rendem algumas linhas que tentarão se articular a seguir.
Os filmes
Começo pela ordem em que vi os filmes; o primeiro foi “Açucena” (cujo pôster invadiu meu Letterbox[1] de tal forma que parecia um bug). Dirigido por Isaac Donato, o documentário observativo (que não interfere, não faz perguntas, “apenas olha”) registra os preparativos da festa de aniversário da personagem-título. A questão é que o filme vai passando, os preparos para o que parece ser uma festa infantil se desdobram em bonecas, enfeites e muito cor-de-rosa, mas nada de Açucena. Só o que há são outros personagens em conversas giram em torno de Açucena. Mas mesmo essas figuras aparecem, muitas vezes, pela metade, pois estão ali meio interrompidas, meio dissolvidas pela arquitetura da casa e pela composição das imagens, existindo apenas para comporem Açucena através dos discursos, enquanto elas próprias são captadas como imagens banais. Surge já neste primeiro filme, uma dicotomia: a das “presenças ausentes”.
É uma duplicidade que se mantém em “Kevin”, documentário de Joana Oliveira em que a diretora se coloca também como personagem. Joana vai à Uganda visitar Kevin (outra personagem-título), uma amiga que conhecera na juventude, quando ambas moraram na Alemanha. Como antecipa a sinopse, o filme é sobre essa amizade e quase não há lugar para nada além disso. Curiosamente, levou-me de volta à leitura recente de “A Amiga genial”. No romance de Elena Ferrante, Lenu é designada pela amiga Lila como sua “amiga genial”. A questão é que tanto para leitor quanto para a própria Lenu, personagem-narradora, Lila é quem parece genial, enquanto a outra é uma presença recessiva, desinteressante e tem consciência disso. “Kevin” reproduz uma relação parecida: a viagem é de Joana, que, com questões emocionais a serem mexidas, busca uma vida oposta, a vida de Kevin. Ela não quer a vida de Kevin para si, mas precisa invadir a força de uma outra rotina, de outra cultura, de outro país. Joana precisa assistir quem vive fortemente e Kevin é essa figura, cujo poder hipnotiza a câmera e a montagem. Numa das poucas cenas em que Kevin não está, o passeio perde o sentido para Joana, que, mesmo continuando diante da câmera, opera um proposital auto-apagamento, uma invisibilidade apaziguada, consciente de que o olhar para si só se realizará se antes ela olhar para a outra. Kevin é a imagem presente e proeminente que Joana procura para entender ausências que poderão perdurar para sempre.
A ausência é também o evento disparador da trama de “A Mesma parte de um homem”: mal morre o patriarca e um homem misterioso (Irandhir Santos) aparece à porta do sítio de Renata (Clarissa Kiste) e sua filha. Renata rapidamente se aproveita da falta de memória do recém-chegado para colocá-lo no lugar do marido, só que, para isso, se realoca noutra posição, que tenta sanar os problemas e abusos do relacionamento anterior. O filme de Ana Johann é uma espécie de “O Estranho que nós amamos” com uma leve sugestão de “Cópia Fiel”. Essa sugestão vem de um certo jogo entre os personagens: Renata, obviamente, cria uma farsa, mas desde o princípio ele parece respondê-la também com dissimulação. O roteiro lacunar lança a dúvida: até que ponto essas dissimulações estão alinhadas? Em que ponto se entranharam uma na outra? A qual dos dois ela interessa mais? A interpretação de Irandhir Santos, cheia de ambiguidades, é o que sustenta essa dúvida por mais tempo, mas esbarra na de Clarissa Kiste, que oscila quando a farsa da personagem sucumbe aos temores e incertezas. Por isso mesmo, é um filme mais forte no miolo do que nas pontas.
Já em “Mirador”, de Bruno Costa, o conflito começa de fato com a partida de Michelle, que deixa a filha pequena aos cuidados do pai, Maycon (Edilson Silva), um boxeador que sobrevive de bicos. A trama não é nova – pai ausente aprende a ser pai na marra –, mas Costa dosa características muito clássicas (há, inclusive, uma excessiva reiteração do caráter inicial do protagonista) com um arejamento que vai ganhando o filme aos poucos. A direção de arte também vai no sentido de um naturalismo dos espaços e reverbera uma seara de filmes nacionais recentes (“Tempestade”, “Arábia”). Edilson Silva consegue escapar das armadilhas desse tipo de personagem, compreendendo que introspecção e ausência não precisam se articular com dureza e rispidez, como acontece muitas vezes nessas composições. Contudo, é a menor das presenças – literalmente – o que faz o filme aparecer, o torna robusto: com apenas dois anos de idade, a pequena Maria Luiza da Costa invade “Mirador” a partir da compreensão que lhe é possível – a intuição de que faz parte de algo, de uma espécie de jogo; intuição que existe, mas oscila, abrindo lugar ao acaso, aos olhinhos que entram e saem da cena, às palavras que irrompem de uma criança cujo aprendizado da fala é captado pelo processo de filmagem. Numa das cenas mais contundentes, Maycon é expulso do restaurante em que trabalha justamente por tê-la levado para lá. Ele, então, parte para apanhar a menina, que está num cercadinho improvisado. Malu é uma presença tímida na imagem, pequena e oprimida no fundo do quadro, mas o olhar que ela dá para acompanhar os passos firmes e furiosos do “pai” é um olhar não só genuíno, mas um olhar que faz com que a menina rasgue e ganhe para si todas as camadas da imagem. Um movimento pequeno, mas cuja verdade garante a visibilidade.
Esses quatro filmes compõem um recorte muito pequeno a se fazer de um festival e a consciência disso está presente tanto quanto a teimosida das ausências, que, por fim, perdurou numa última: a inexistência daquilo que, talvez, tenha me intimidado em 2012 – a aura de uma cidade ocupada por um festival de cinema. Um certo Cinema (que, aliás, tinha pouco a ver com o meu filme), mas, um Cinema que podia ser recortado entre erros e acertos, com filmes bons e ruins. Para o bem ou para o mal, Tiradentes em 2012 evidenciava as crises trazidas por esse Cinema, ao contrário da Tiradentes desse outro tempo e desse outro Brasil, em que a falta e os desaparecimentos completos ou parciais pulularam nesse meu pequeno catálogo pessoal, talvez porque a falta, a escassez, a extinção se imponham como projeto de Estado ao Cinema brasileiro, talvez porque a rotina incrustada numa pandemia tenha me tirado ainda mais o controle do tempo. Nesta ida a Tiradentes, a presença não se configurou na estadia entre as ruas de pedra, mas sim num malabarismo entre os compromissos (também em múltiplas telas) e a falta do mundo de fora. Por fim, num ano em que as invisibilidades se evidenciam e se alastram, é uma sincronicidade curiosa esbarrar em quatro filmes que trazem presenças que minguam ou sequer aparecem. Filmes de presenças ausentes.
[1] Letterbox é uma rede social que permite a listagem de filmes, além de outras ferramentas voltadas ao público cinéfilo.