Tramas dos cães

por Álvaro André Zeini Cruz

1. Têxt. Conjunto de fios dispostos no sentido da largura da peça de tecelagem [Ver tb. urdidura.]

2. Conjunto de incidentes que compõem uma história; ENREDO; INTRIGA*

Há três tramas em Ataque dos cães:

  1. A corda: forma externa marcante do western. Aqui, trançada nessa pele-armadura que é o couro seco sob o sol. Tecida por Phil (Benedict Cumberbach), o cowboy-carapaça que torna a ação um rito público, encenação de destreza e virilidade. Se a finalidade desse utensílio-trama pende entre segurança e letalidade, há sadismos e vinganças que podem antecipar o segundo fim ao momento da manufatura. Engendrar não o objeto que enlaça ou enforca, mas a corda que carcome a carne pelo simples manusear.
  2. O lenço: tecido de trama mais cerrada, com fios e concavidades numa alternância incógnita ao olhar, mas compondo um todo, uma completude que serve à cena central, aquela em que, à beira do rio, culmina o filme háptico de Jane Campion. O cowboy cascorento – avesso inclusive a banhar-se – agora é pálido e esguio diante das iniciais de Bronco Henry bordadas em alto relevo. Deslocado do cenário arenoso para um pequeno paraíso verdejante e particular, ele toca o pedaço de pano, esticando-o contra a luz do sol que não arde, perfuma. Ao fundo, as folhas das árvores tremulam e caem na textura desse espaço reduzido pela pouca profundidade de campo ao corpo e ao lenço, ao sentir dado entre esses tecidos. Então, o lenço vagarosamente desvela um novo rosto, que não mais se esforça para carregar todos os cowboys mal-encarados, mas um homem que se despe para sentir o prazer de ter a pele tocada pela suavidade de uma trama-memória mantida a sete chaves (provavelmente a grande cena da carreira de Cumberbach até aqui). Quando reaparece, esse lenço deixa de ser objeto-lembrança para se tornar figurino, uma echarpe encharcada que escorre pelas costas da figura que renasce de dentro do lago. Esse personagem revelado é flagrado pelo olhar intruso de Peter (Kodi Smith-McPhee), que vê a nudez e o laço rente ao redor do pescoço. Anuncia-se ao rapaz uma oportunidade, ainda que Peter se interesse menos pelo método (o enforcamento) do que pelas possíveis texturas do laço.
  3. A trama: esses dois personagens são abruptamente costurados por uma circunstância que lhes escapa; o repentino casamento entre George (Jesse Plemons), irmão de Phil, e Rose (Kirsten Dunst), mãe de Peter. Para além dos conflitos aparentes (representados em intimidações domésticas dramaturgicamente originais, como a cena do confronto instrumental), há uma série de questões que permanecem camufladas sob os fios que enredam esse quarteto: a relação entre os irmãos (o casamento praticamente às escondidas), assim como as memórias (diferentes) que mantém de Bronco Henry, deixam em suspenso se a relação entre Phil e seu mentor era um romance correspondido, platônico ou um mesmo um abuso recalcado. E se por um lado, o filme não responde objetivamente essas questões, por outro, Phil vai sendo desvendado por Peter, que disseca as linhas dos gestos para se desfazer das tramas e encontrar o bicho-da-seda. O garoto é o casulo, vai se revelando um emaranhado de enigmas, obscurecendo nos côncavos, nos nós, não só a natureza de seu comportamento sádico (uma resposta instantânea ou um traço permanente?), como o real instante em que assumiu a rédea da situação (desde a cena no rio ou desde o primeiro encontro, quando o tecido em questão era um guardanapo de pano?). Para Campion, o poder do cão (do título original The Power of the dog) está em olhar para a trama, enxergar as protuberâncias, mas, além disso, prever o efeito das reentrâncias, da fricção entre as irregularidades texturais. Para além da montanha imponente, Peter diz ver o cão que ladra, ainda que não veja. Essa dissimulação do olhar sobre o todo é o que permite que ele vá cirurgicamente ao detalhe, que faz com que o outro abra a guarda. Consegue, assim, domá-lo, dando corda sem precisar retesá-la, deixando que o outro se emaranhe, se esfole, esparrame o sangue pela textura pálida do trigo. Em O Ataque dos cães, há o que ladra e há o que laça. Laça e espera, sob o ruído dos dentes de um pente.

* definição retirada do Novíssimo Aulete – dicionário contemporâneo da língua portuguesa.