As imagens são, um pouco, bolas de sinuca

por Álvaro André Zeini Cruz

Toda imagem […] nos oferece algo para pensar: ora. um pedaço de real para roer, ora uma faísca de imaginário para sonhar. 

Toda imagem é uma memória de memórias, um grande jardim de arquivos declaradamente vivos.

É com esse cérebro — suas lembranças, suas memórias e os esquecimentos nele contidos — que toda imagem se choca, arrebentando uma espiral de novas e outras operações sensoriais, cognitivas e afetivas.

(SAMAIN, 2012, p. 32-34)

As passagens acima são de As imagens não são bolas de sinuca, ensaio escrito pelo Prof. Etienne Samain e que abre o livro (por ele organizado) Como pensam as imagens. É um texto que visito com certa recorrência, acredito que por motivos ambíguos: porque oxigena coisas sobre a natureza das imagens que prefiro não perder de vista, mas também porque fui um aluno um pouco relapso ao Prof. Etienne, que precisou dar alguns puxões de orelha para que aquele mestrando de 23 anos chegasse no horário às aulas da segundas de manhã. Quando ele nos provocou com a pergunta-proposta Que imagem vocês levariam se fossem à Marte?, eu já frequentava pontualmente a disciplina de Epistemologia e Antropologia da Comunicação Visual. Sorte a minha, que carrego viva a fotografia de William Eggleston, que mostra uma moça ruiva com o rosto parcialmente velado e uma nota de dólar nas mãos apoiadas sobre um balcão. Levo ainda a compreensão de que o pensamento das imagens se dá de forma sistêmica, contendo, numa intrincada rede de negociações, o olhar de quem as vê; e é dessa perspectiva que as linhas a seguir partem.

A fotografia A barricada de livros na janela de Kiev (como foi intitulada pela imprensa), de Lev Schevchenko, me reencaminhou ao ensaio, cuja conclusão se assemelha à revelação a qual a disciplina nos impulsionava: imagens ficam na caixa de coisas vivas e não na das bolas de bilhar. Inspirado nos pensamentos de Aby Warburg e Didi-Huberman, Prof. Etienne sintetiza a imagem como “uma vivência, […] uma sobrevivência e, mais: uma supervivência” (p. 33). Contudo, a fotografia de Kiev é, à primeira vista, uma espécie de natureza morta colocada à distância: nela, a janela do que aparenta ser um prédio é preenchida por livros no lado interno, enquanto, externamente, é rasgada pelo tronco e galhos de uma árvore, que se alastram em direção a todas as margens da foto.

Formalmente, é uma imagem complexa: em primeiro plano está essa árvore, dúbia, provavelmente viva, mas castigada pelo inverno. Perfumados pelo musgo verde, troncos e galhos cinzas e secos se espalham pelas laterais e pela profundidade da foto, tal qual um raio concretizado em matéria, talhado em madeira. Raios e relâmpagos sempre soaram a mim como sinistras veias resplandecentes, e árvores secas, como desdobramentos terrenos dessas descargas elétricas, carregadas da mesma impressão de mau agouro (talvez por culpa das animações da Disney ou do plano em que a silhueta de uma árvore esturricada fulmina imageticamente Scarlett O’Hara em E o vento levou…). Por outro lado, esta árvore à frente da imagem resiste numa cidade que vem sendo rapidamente transformada em escombros, num planeta cujo processo não é diferente. E se árvores são matéria-prima na indústria papeleira, esta rasga de maneira orgânica e intrincada as pilhas de papeis ao fundo, ordenadas de forma civilizatória conta a incivilidade de uma guerra que se pulveriza nas janelas eletrônicas dos broadcasts e Tik Toks. Estilhaça ­– vejam só – uma intacta janela analógica.

O caminho do olhar, da árvore à janela, passa por uma cruz (outra ambiguidade) feita em reboque, que sublinha parte da regra dos terços e produz uma primeira composição em moldura; esta sugestiona o olhar à moldura seguinte – o sobreenquadramento dado pela própria janela. Com o vidro intacto, a janela de batentes brancos vela o apartamento e exibe essa trincheira inusitada, com livros construindo um muro para proteger das explosões e estilhaços, as vidas desconhecidas que ali habitam (a princípio, só o que se pode supor é que ali moram leitores). Viralizada, essa fotografia-documento de guerra recupera e complementa involuntariamente uma instalação artística que também se espalhou pela internet há alguns anos: na obra O Castelo, o mexicano Jorge Méndez Blake desnivela e desestabiliza um muro de tijolos aparentes ao colocar na base o romance homônimo de Franz Kafka. Enquanto a instalação do artista usa o livro, e tudo o que ele contém – a linguagem, a ficção, a alteridade, o sonho –, como um abalo sísmico simbólico às barreiras, o muro de livros de Kiev tem, sobretudo, um viés pragmático: erguer a parede de um castelo – etimologicamente, um “lugar fortificado” – com o que é possível, dentro de um apartamento comum, proletário. Para recuperar a utopia do muro-instalação é preciso levantar um muro-contenção.

Na centrifugação do olhar aos arredores da janela, a disposição horizontal dos “tijolos” contrasta com a verticalidade das pastilhas cinzas e encardidas que revestem a parede externa do prédio, mas, mais pujante do que isso, é o sentido como os livros foram posicionados ao mundo de fora (e, consequentemente, à foto): colocados com os cortes expostos, eles compõem um mosaico heterogêneo de tamanhos e tons. Estivessem as lombadas exibidas, perder-se-ia as nuances, os meios tons aqui explícitos entre as páginas brancas e amareladas (mais ou menos manuseadas, mais ou menos marcadas pelo tempo). Perder-se-ia também a lembrança veemente de que, entre aqueles volumes, existe algo estampado entre morfologias, sintaxes e semânticas, ou seja, discursos, que, aqui, ficam na dimensão da elucubração, uma vez que surgem como pistas, mas permanecem incógnitos ao obturador, à lente, à placa sensível, aos pixels. Os livros posam para – tal qual as imagens – evocarem os mistérios e promessas que encerram em si; e, segundo Prof. Etienne, é preciso “se deixar levar” pelas imagens opacas, sem perder de vista que a imagem é matriz da fala e da escrita. Da linguagem.

Se a guerra sinaliza uma ruptura comunicacional – e, consequentemente, da linguagem – em prol do poder, aqui, a linguagem está posta simbolicamente como fronteira final à morte. Qualquer explosão ou estilhaço diante da janela terá que atravessá-la, fazendo-a em frangalhos, diluindo discursos em sopa de letrinhas. É provável, portanto, que a queda deste muro picote as páginas, as marcas e a única lombada legível, disposta quase como uma pista a mais dos habitantes que se protegem — Glazunov (vale uma pesquisa). Vidas que, embora incógnitas, se fazem presentes, lutam e contra-atacam através desses fragmentos físicos, ponta material do que leram, do que estiveram dispostos a ler ou do que simplesmente acumularam, e que, agora, usam como barricada.

Se as imagens são sistemas vivos que interligam tempos, espaços, contextos a quem as vê e as faz, esta da janela de Kiev encerra no empilhamento de tijolos-janelas, a dicotomia de dar e não dar a ver. A mesma dicotomia que me leva a discordar pontualmente do querido Prof. Etienne: como matéria, as imagens não são de fato como bolas de sinuca, mas, como fenômeno, operam movimentos semelhantes ao dessas bolas, que rolam e batem umas nas outras (outras imagens, outras memórias, outras experiências estéticas). Algumas seguem diretamente ao conforto da caçapa, outras rebatem nas margens do quadro, estacionam noutros lugares. Entretanto, há ainda aquelas que, dependendo da força, extravasam qualquer contenção: atiram-se sem temer a queda ou o choque, conscientes de que os choques são inevitáveis, sabedoras de que, mesmo no mais fatal dos mergulhos, seus estilhaços jamais serão cacos inanimados. Nesta Barricada de livros na janela de Kiev, a espessura de uma natureza morta incomum se impõe contra a morte relampejando vida, estilhaçando em sua integridade uma vivência, uma sobrevivência, uma supervivência. Não são redondas, lisas ou impenetráveis, mas são propensas ao mover, ao co-mover e, principalmente, ao choque. São, um pouco, bolas de sinuca.

SAMAIN, Etienne (org). Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.