Arroz com feijão

por Álvaro André Zeini Cruz

Enquanto alguns títulos (supostamente) revitalizam ou revolucionam a telenovela, o arroz com feijão bem-feito tem servido teledramaturgia de sustância às 18:00 e às 19:00. Falo nisso pensando, por exemplo, em duas cenas aparentemente simples levadas ao ar em Garota do Momento e Volta por Cima.

Comecemos não pela cronologia dos horários, mas da exibição das cenas. Exibido em 30 de janeiro de 2025, o capítulo 106 de Volta por Cima — até aqui a melhor novela de Cláudia Souto —, trouxe um diálogo em campo e contracampo que nada tem de revolucionário na forma, mas tem o diabo nos detalhes, aquilo que às vezes falta aos projetos com macroestruturas pretensiosas. Me refiro à cena em que Ana Lúcia (Iara Jamra) visita a venenosa Violeta (Isabel Teixera), a chefe do jogo-do-bicho que ocupa o posto de vilã da trama. A ação parte da primeira, a mãe simples que, humildemente — mas dominada pelo ímpeto materno — pede que a outra demita sua filha, Carla (Pri Helena), capanga da contraventora. Teixeira dispensa apresentações; vem ganhando papéis de destaque desde Amor de Mãe, mas explodiu, de fato, com a Maria (Bruaca) de Pantanal. Encarna sua segunda vilã consecutiva, mais calculista do que a anterior, no remake de Elas por Elas. Na pele de Violeta, ela ouve o pedido e arreganha o rosto em puro deboche, impondo a reação de Jamra no contracampo — desconcertada, ela desvia o olhar para baixo por tempo o bastante para que se recupere da humilhação e recalcule um encarar mais duro, à altura dessa interlocutora poderosa. Jamra talvez mereça uma reapresentação: atriz relegada à papéis indignos de seu tamanho, teve sua personagem mais marcante em O Rei do Gado, como a empregada Lurdinha. Sua voz aguda característica contrasta aqui com a gravidade dessa mãe de vida áspera, que, desesperada, tenta, por vias tortas, acertar a vida da filha adepta à bandidagem.

Ao longo do primeiro beat, com Ana Lúcia submetida ao deboche de Violeta, há uma clara diferença de posição cênica entre as duas: enquanto a dona da casa está no sofá, Ana Lúcia se mantém de pé, como alguém não convidada a sentar-se, tratada como uma possível serviçal, incompleta justamente por causa da insolência de se atrever a falar. Ainda que visualmente abaixo da outra, Violeta, na impossibilidade de antecipar a intrusão, regula o espaço. A personagem de Jamra percebe e não deixa por menos: quando revela saber que a outra perdera um filho, senta-se vagarosamente no sofá à frente, num gesto que mistura uma brecha de empatia e uma dose de insubordinação. Jamra cospe as palavras, como se o desespero materno estivesse no limiar da explosão, do choro. Teixeira, do outro lado, parece engoli-las, sentindo a indigestão na mandíbula: ela leva a mão diante da boca e, quando fala, encolhe o queixo, como se preparasse um bote caso as palavras, pronunciadas em tônicas ameaçadoras, não dêem conta da intimidação. É um campo e contracampo, porém o texto é afiado e as atrizes fazem algo que, hoje, pode parecer perfumaria, mas é vital: contracenam compreendendo a troca como alicerce e pulsação da cena; o resto é que é acabamento. A partir desse princípio básico, estrelam uma cena aparentemente banal, mas verdadeiramente eletrizante.

Na elogiadíssima novela das seis, o tom é outro, mas a cena repete o magnetismo. De novo, duas atrizes de primeira grandeza contracenam: Maria Flor e Maria Eduarda de Carvalho interpretam, respectivamente, Anita e Teresa, pontas do triângulo amoroso com Alfredo Honório (Eduardo Sterblich). Não deixa de ser uma cena de acerto — ou, pelo menos, de prestação — de contas, de pingo nos is, mas alinhada a uma lógica feminina respeitosa, regimental às mocinhas desta novela. Por isso, apesar do background musical melodramático, é uma cena que comove pela contenção das atrizes nessas personagens que “simplesmente” conversam com franqueza enquanto compartilham o sofá, decupadas num campo/contracampo onde uma está presente à outra pelo over the shoulder (algo que só acontece com Isabel Teixeira na cena de Volta por Cima). Essa proximidade demarca contrastes e tangentes entre a Anita e Teresa: enquanto a primeira “tira um peso das costas” (como ela mesma diz), num descarregar feito entre olhares, sorrisos, respirações marcadas e gesticulações discretas, a segunda encara a interlocutora com olhos fixos, num interesse tão genuíno que desarma qualquer outro gesto que não envolva olhar, ouvir e falar. De certa forma, é um momento que quebra expectativas acerca desse tipo de situação teledramatúrgica, afinal o que se tem é um diálogo maduro, equilibrado no tom, lapidado nas pequenas nuances que revelam afinidades e não escondem os sofrimentos. 

Levadas ao ar com poucos dias de diferença, são cenas que lembram que, antes de reinventar a roda, a teledramaturgia precisa reencontrar a verdade. Semelhantes nas formas e distantes no tons, essas cenas de Volta por Cima e Garota do Momento são daquelas que conseguem algo basilar à telenovela — fisgar o olhar do público por tempo o bastante para que ele se pergunte sobre o que as personagens falam. Para isso, não é preciso preenchimento com botox ou um jogo que vira o tempo todo; basta lembrar que drama é ação, e ação demanda tempo e centralidade no trabalho com os atores, além do entendimento de que ela pode até nascer de storylines ou sinopses mirabolantes, mas a sustentação da ação se dá em cena, nutrindo célula a célula. Um arroz com feijão bem-feito pode ser uma boa pedida.