Arqueologia do Ressentimento

por Álvaro André Zeini Cruz

*Como de costume em casos como este, considero ético constar que a equipe do filme Ressentimento é formada por amigos e colegas.

Salvo uma ou outra ocasião, é raro que eu escreva sobre filmes de amigos, mas como Denis me provocou a comentar Ressentimento ao final da sessão – e as palavras que arrisquei me pareceram mal concatenadas –, eis uma tentativa de fazer jus filme (tentativa porque a crítica nunca faz jus a filme algum, está sempre atrás e é sempre incompleta).

Um retrospecto da fala: de supetão, sem ter digerido direito o filme, comentei que me pareceu corajoso propor uma trama sobre violências domésticas que especula sobre sentimentos ambíguos, para além daquele do título. Citei a discussão acerca de Tudo é rio, romance de Carla Madeira, que parte da mesma temática para desaguar num final reconciliatório. Madeira diz que seu livro é sobre a condição humana; Denis, que o filme dele e de Mariana Vita, sobre a complexidade dos sentimentos. Ambos passam por um entendimento que deveria ser natural: se a arte pode, sim, propor reparações e finais felizes, é certo de que este não é seu papel estrito; ela existe para tentar reelaborar a complexidade humana em suas nuances mais diversas, e essa compreensão é basilar a Ressentimento. A reconciliação – juntar de novo – não é, aqui, uma possibilidade; o prefixo sublinha um sentir que se retroalimenta a ponto de não se esgotar, o que não inviabiliza outros sentimentos. Assim, mesmo quando a matriz do ressentimento se desfaz, a libertação esperada não se concretiza; pelo contrário, escancara o vazio, o luto e as relações mutualísticas as quais o título é capaz.

Mariana Vita e Denis Augusto escrevem e dirigem o irmão paulista de A Mesma parte de um homem, longa paranaense protagonizado por Clarissa Kiste e Irandhir Santos. Mas se o filme de Ana Johan reequaciona a relação de poder entre um casal a partir do sexo, da ânsia pelo gozo, pelo sentir, o longa de Vita e Denis parte do princípio de que não há mais lugar para prazeres e palpitações. É num interior de sítios e pastagens secas que os corpos se esgueiram sob um sol lânguido, que desenha os rostos com o auxílio dos galhos e folhas invernais; o clima (meteorológico) colabora com o suspense atmosférico, mas também com a incerteza sobre essa locação interiorana, que é uma, mas aglutina tantas outras possíveis. É sob uma decupagem rigorosamente composta em tripé que esses copos – pai, mãe e filha – irão confrontar-se em lacunas, posturas e gestos.

A estrutura do filme obedece a “lógica” do ressentimento; no jogo das retroalimentações, os rancores se sobrepõem de maneira amorfa, deixando falhas e ferimentos, compondo um corpo ilógico. Neste contexto, não se sabe exatamente até que ponto a opressão masculina atinge a filha, assim como não se sabe se a convalescência de Carlos (João Folcato) está ligada a uma compra de mercado, ao ritual religioso, ao destino ou simplesmente à vida precária. Nessa teia de enigmas das relações e circunstâncias, talvez o que haja de mais concreto seja a conjunção de posições-sínteses, algumas singulares, outras repetidas: de cócoras, rente à terra, a postura ambígua de Carlos guarda a altivez de um bicho que observa para atacar. Esther (Beatriz Napoleone), a filha, responde à altura; encara o pai como num duelo entre caubóis e pergunta – “cadê o cachorro?”. 

Entre eles, está Judite (Andressa Francelino), a mãe com o rosto imerso na penumbra, contornado pelos cabelos longos que escorrem como um manto. A pose remete a um entremeio de Madonna e Pietà; sem Cristo no colo, pois Cristo abandonara as vidas daquela chacrinha. Resta a ela recorrer a São Cipriano, um santo intermediário (acionado numa negociação entre o horror e o realismo mágico). Depois, aparar o corpo que cai (momento particularmente inspirado da mise en scène) para, por fim, guardar, cindida entre galhos, a descoberta subterrânea da filha: esmiuçar o ressentimento requer a arqueologia, uma vez que há ali um complexo de sentimentos reverberantes, que gastam todos os afetos. Roem até só sobrarem os ossos.