Armadilha

por Álvaro André Zeini Cruz

Em meio à Armadilha, Cooper (Josh Hartnett) e a filha Riley (Ariel Donoghue) esperam a garota ser chamada ao palco de Lady Raven (Saleka Night Shyamalan), estrela teen cujo show vira uma gigantesca arapuca para pegar ninguém menos do que o próprio Cooper, aparentemente um pai de família que recompensa a filha por boas notas. Mas as aparências enganam e, além do expediente paterno, Cooper é, no contra-turno, “o açougueiro”, um serial killer esquartejador que, num suposto descuido, esquecera os recibos daquele show numa cena de crime. A essa altura, ele já sabe que sua cabeça está a prêmio; inclusive, conseguiu chegar à beira do palco por meio de estratagemas insuspeitas, aproveitando-se da ininteligência da segurança que é incapaz de desconfiar de alguém que, como ele, personifica certo American way of life. Cooper vislumbra sair dali pelos fundos, dissimulado entre o staff. Mas, quando a adolescente parte para um dueto de Dreamer Girl ao lado da cantora-ídolo, a tensão do serial killer muda de chave, transformando-se na apreensão de um pai que assiste à filha realizar um sonho, presenciando o instante mágico em que uma memória vital e eterna é criada. O sonho de garota desconcerta o Açougueiro. Ali, de pé, sobra o pai numa ansiedade ritmada pela música, acompanhando e torcendo por cada nota e cada gesto coreografado.

Trata-se da brecha aberta a uma possibilidade de empatia, estilizada na alternância do ponto de vista desse pai companheiro — que, da coxia, zela pela filha enquanto ela cresce — e do próprio campo, que reúne observador e apresentação: Cooper quase sempre divide a tela fílmica com um telão do próprio show, ou seja, o olhar paternal é imageticamente associado à felicidade de Riley. Aliás, eles são conduzidos ao palco pelo próprio Shyamalan, que — numa de suas pontas hitchcockianas — leva a dupla até Lady Raven, interpretada por outra filha — a do próprio cineasta. Abre-se, assim, um filme de pais e filhas, em que a personagem encarnada por Saleka Night Shyamalan é a responsável por torcer a trama, causando a primeira dificuldade real a esse protagonista habitado por dois.

Duplo, mas não fragmentado, ao menos não como no filme homônimo em que Shyamalan modula as personalidades que competem pelo corpo de James McAvoy. Aqui, elas coexistem e são conscientemente moderadas por Cooper, exceto nesses momentos de genuína emoção. A ontologia da paternidade é acionada como máscara para que o assassino se livre do labirinto em forma de estádio. É, no entanto, na casa de subúrbio — lar do serial killer — que as coisas escapam a ele. Mais especificamente, no outro único ato-falho do Açougueiro, que desponta no segundo dueto protagonizado por Raven e Riley; não mais no centro do ginásio tecnológico, mas no piano da sala, no seio caseiro. Quando Lady Raven convida Riley para juntar-se a ela, o Açougueiro já está sob extrema pressão, mas o pai cumpre o trabalho de registrar a cena com o celular (objeto que, aliás, suplanta as cabeças durante a sequência do show).

Surgem os dois planos mais exigentes do rosto de Josh Hartnett: no primeiro, a mandíbula do Açougueiro trava e a pele sob um dos olhos tremula num leve espasmo involuntário, de tensão, antes da câmera descer até o celular, numa das mãos. O contracampo não é mais a visão do assassino, como no show, mas a união familiar conciliada na encenação em profundidade, composição digna de Vincente Minnelli. Quando a decupagem recupera o homem com a câmera, o olhar transita do celular de volta a esse rosto, que agora é outro: o maxilar relaxa e permite que os lábios se entreabram, surpreendidos, embasbacados. É diante desse lampejo do sublime, nesse espaço em que nada de extraordinário costuma acontecer, que os olhos do homem que comete dilacerações grotescas titubeiam, da filha, à frente, à esposa, ao fundo. Por fim, faíscam; não por um ardor do monstro interno e incógnito, mas porque umedecem diante da extrema emoção de ver dois mundos colapsarem sob tanta beleza.

É também a última vista concreta desse pai, cuja imagem desmorona diante do rapto do celular: nas mãos dele, aparelho de vigilância e morte; nas de Lady Raven (que se tranca no banheiro), comoção e resgate. Essa virada traz à tona um dado até então subterrâneo no filme de Shyamalan: a memória materna como inspiração ao pai e assombração ao monstro, não pela perspectiva hitchcockiana opressão/imitação, mas por um entendimento de que só as mães podem conhecer as verdadeiras naturezas de seus filhos. Cúmplice da caçada, Lady Raven é mais hábil que o FBI e evoca essa lembrança para driblar o Açougueiro, mas a maternidade só se concretiza como força opositora na cena derradeira entre o casal — aquela em que Shyamalan usa uma chaleira como superfície refletora, como em A Visita; em que Cooper despe a camisa e expõe os músculos, tal qual a Besta de Fragmentado.

Não há motivação narrativa para que Cooper se desvista, mas, na camada simbólica, Shyamalan parece expor uma tese sobre essa corporeidade viril, cabível tanto à imagem do homem insuspeito, quanto ao monstro desnudado e disforme, exposto por uma única ação estratégica da mulher, que dispara um efeito-dominó. Se a maioria da ação se dá na relação entre pai e “filhas”, é na breve participação das figuras maternas que a duplicidade desse homem se revela não como uma coisa incontrolável, mas como possibilidade humana concretizada na escolha, no livre-arbítrio. Quando a mãe de Cooper ressurge, ao final, é para dizer ao filho que “ele não é inteiramente um monstro”. Essa mãe, antítese da de Psicose, volta para lembrar que há um humano ali, e que o jogo proposto por Shyamalan é justamente o de olhar para o rosto de Josh Hartnett — provavelmente em seu melhor papel/atuação — e se perguntar: sob essa face, sob tal gesto, está o pai ou o serial killer? Só o que é certo é que a Armadilha dessa adivinhação é ter sempre duas possibilidades equidistantes e interpretadas sob controle consciente, ou seja, pela dissimulação. O Psicose de Shyamalan não é sobre projeção, mas sobre um recalque controlado; não da ID, mas do superego. O Açougueiro, provavelmente, leu Freud.