Amor de Mãe: um olhar sobre Vale Tudo (1988)

por Álvaro André Zeini Cruz

Este é um texto sobre Vale Tudo (1988), mas empresto o título da novela anterior de Manuela Dias, que, cada vez mais, me parece uma escolha natural para assinar a nova versão. Em Amor de Mãe, Dias articulou maternidades gestantes de um país: uma mulher nordestina, uma negra e uma portuguesa triangulavam a plot melodramática do filho perdido, configurando, no Brasil de Bolsonaro, uma trama em que o espaço doméstico era a única possibilidade de lugar seguro; isto é, ao menos até o momento em que a mãe colonizadora começava a avançar sobre os outros lares. Vale Tudo, todo mundo sabe, é regida por uma pergunta — “vale a pena ser honesto no Brasil?”. Contudo, talvez o tema tenha um alçapão, que nos permite trafegar do social ao familiar. O que tento defender aqui é que Vale Tudo é uma novela sobre o amor de mãe.

Novela de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Barssères, Vale Tudo tem um incidente incitante incontornável: a ambiciosa Maria de Fátima Acioli (Glória Pires) vende a casa da família e some com o dinheiro, deixando a mãe, Raquel (Regina Duarte), a deus-dará. Mãe abnegada e mulher trabalhadora, Raquel é concebida nessa ordem, como uma mulher submissa aos sacrifícios da maternidade solo. A casa é fronteiriça (a trama inicia em Foz do Iguaçu), mas Raquel a ergue sobre um terreno inequívoco, constituindo um lar-moral onde a honestidade é argamassa do alicerce aos acabamentos. Essa matéria inquestionável só abre brechas a valores correlatos, como o trabalho, que Raquel entende como uma manutenção diária, mas que, aos poucos, é capaz de expandir essa casa, a vida familiar material. Maria de Fátima não divide dessa crença; pelo contrário, é uma antítese impermeável a todos os valores sob os quais fora criada, versão radical das ambições do pai ausente. Pois se Rubinho (Daniel Filho) sonha com outra pátria — aquela que capitaneia o consumo —, Fátima é a outra volta nesse parafuso geracional: obcecada por riqueza — e menos ingênua do que a mãe —, ela compreende que a fortuna via força de trabalho individual e honesto é uma exceção; e há mais de cinco séculos, o Brasil corrobora a trama, fazendo de Fátima uma personagem verossímil.

É provável que a ausência de Rubinho, mas a permanência do sonho paterno, atravanquem a completude do Complexo de Electra; na impossibilidade de uma dialética entre os valores, Maria de Fátima não se identifica com Raquel, nem com a casa que estende essa mãe (e não ouso me estender na psicanálise, que não é minha especialidade). Imune ao habitus desse lar, Fátima o vende de forma material e simbólica, partindo para o Rio de Janeiro em busca do único meio que entende como ascensão social — o casamento.

É assim que ela se infiltra entre os Roitman, casando-se com Afonso (Cássio Gabus Mendes), o herdeiro homem que personifica uma contradição: ao mesmo tempo em que reproduz hábitos machistas, Afonso tem uma fragilidade que o afasta do ideal masculino patriarcal, o que restringe sua autonomia diante do verdadeiro patriarca da família. Ele se casa com Fátima, esperando dela a esposa submissa e devotada; justamente o papel que a irmã, Helena (Renata Sorrah), assume mais tarde, quando se casa com Ivan (Antônio Fagundes). Antes, no entanto, o anti-herói de Fagundes se envolve com Raquel, a heroína irretocável, num romance cuja incompatibilidade (a moral inegociável vs. a moral maleável) já antecipa desencontros. Um ponto é importante: Raquel só se realiza no amor e na profissão quando se despe e renega a própria maternidade. O amor de mãe permanecerá trancafiado nos confins da heroína durante boa parte da trama, enquanto ela e Maria de Fátima permanecem afastadas. A mãe paralela a ela tentará minar essas outras conquistas, mas antes de chegarmos aos polos, convém esmiuçar um pouco mais os meios.

Assim como Maria de Fátima, Ivan também se instala entre os Roitman, com a diferença de que Fátima é herdeira de Pandora, enquanto Ivan se entrega aos fetiches, escamoteando sua subida numa ilusão amorosa que lhe é conveniente — ele pode passar de anti-herói ao herói que salva Heleninha do alcoolismo; uma farsa que, obviamente, não se sustenta. A intersecção dos mundos atrita dicotomias entre personagens e situações: Ivan passa a compartilhar da mesma dúvida que cerca Fátima (deram o golpe do baú?), assim como Fátima e Heleninha vivem casamentos de aparências trocadas (o que corrói a relação entre Helena e Ivan é, justamente, aquilo que Afonso procura em Fátima). Vale Tudo, aliás, é uma novela de duplos; das malas iguais, passa-se ao paralelismo das circunstâncias: enquanto Celina (Nathália Timberg) investiga Fátima e César (Carlos Alberto Ricceli) num apart hotel, o mesmo César apura sobre Raquel e Ivan na pousada em Búzios; depois que Raquel estampa uma matéria da Tomorrow, tanto Fátima quanto Aldeíde (Lilia Cabral) tentam ganhar algumas páginas na revista de Renato (Adriano Reis); Helena e Bruno (Danton Mello) desaparecem em circunstâncias concomitantes, e a ineficiência de Ivan em lidar com a situação dá brecha para que Marco Aurélio (Reginaldo Faria) se aproxime de Leila (Cássia Kiss), estabelecendo uma relação central para o desfecho da trama.

Essas e outras costuras denotam uma trama coesa, bem urdida, baseada na causalidade e no timing paciente entre plantar pistas e colher recompensas. Nesse sentido, Vale Tudo é uma novela técnica, com absoluto domínio do melodrama e da estrutura folhetinesca; as cenas se engancham umas nas outras, seja para avançar com a ação ou para comentar/reiterar ações anteriores. O uso das elipses como recurso dramático entrega uma confiança na inteligência do público, ativo nessa costura que torna os paralelos tangentes, que aproxima os polos. Pois se o amor de mãe é o infortúnio de Raquel, é, na outra ponta, a máscara de Odete Roitman.

É verdade que Odete, em momento algum, veste o arquétipo materno mais convencional, mas é na maternidade — ou melhor, na fragilidade dos filhos — que ela encontra a desculpa para ser forte, pragmática e autoritária. Odete sugere que ela é o que é, para que não aconteça ao lar dos Roitman o que aconteceu ao dos Acioli; para que essa casa permaneça em pé, ainda que alicerçada numa placa tectônica frágil e ilusória. Usando a família ora como desculpa, ora como refém, Odete Roitman é nosso Walter White (sem problemas financeiros) muito antes do personagem de Bryan Cranston existir. Ilusionista, ela aprisiona o iludido Ivan entre aparências, mas, numa ontologia de Odete, é uma personagem que se intersecciona com Fátima, nos valores e nos meios. Apontada como filha moral de Odete tanto pela própria, quanto por Raquel, Fátima é o espelho dessa vilã narcísica, que reconhece traços presentes, mas recalca um passado de ações imorais. A maior delas é aquela que instala a fraqueza dos filhos e, consequentemente, a fantasia materna da qual Odete se serve para sustentar a posição que lhe convém — a patriarcal.

Para quem se importa com spoilers (de uma novela dos anos 1980), a hora de se retirar é essa: ao longo de Vale Tudo, Heleninha é tida como responsável pelo acidente automobilístico que matara o irmão mais velho, e pelo incêndio que quase levou o próprio filho, Thiago (Fábio Villa Verde), quando bebê. Entre elipses e cenas cortadas antes de qualquer revelação, os autores enredam uma reviravolta que desmascara Odete não em casa, mas na empresa que ela encabeça com punho de ferro. A verdade vem pela força oposta à vilã, desamarrando não só chantagens imediatas (envolvendo Ivan), como nós mais antigos, da vida pregressa dos personagens. É pela boca de Raquel que público e personagem se surpreendem com a revelação de que a tragédia de Heleninha é obra da mãe. Responsável pelos dois acidentes — o que tirou a vida de seu primogênito e o que quase matou o neto —, Odete viu na filha alcoolista a oportunidade de livrar-se dos crimes e da culpa. O ônus dos traumas causados (principalmente a Heleninha), ela converteu num bônus a si mesma, já que, ao fragilizar os rebentos e colocá-los numa redoma de vidro, inseriu-os numa pátria à parte, dependentes da força dessa mulher que, porventura, é mãe. O amor de mãe de Odete Roitman se alicerça sobre uma mentira, que por sua vez, nasce de uma privação: as desventuras têm início quando Odete é flagrada num caso extraconjugal com um amigo do filho, extravasando o desejo recalcado sob um casamento de negócios. A culpa se articula a uma recuperação do prazer tolhido, gerando uma dinâmica cíclica que retroalimenta a maternidade de Odete Roitman. Ela conspira para que o filho se case com uma mulher com as mesmas ambições que ela (e ver os defeitos de Maria de Fátima seria reconhecer os seus próprios); joga a filha num casamento de carências, que negocia uma segurança ilusória e, portanto, volátil.

Os casos amorosos são relações de interesses mútuos: comprados, César e outros amantes mais jovens viabilizam a sustentação do poderio dessa Margaret Thatcher “tupiniquim” (termo que Odete repete como sinal de menosprezo ao “paisinho” que ela suga), para quem família e empresa são um só vale tudo. E se o próprio desejo é um negócio, ele é também combustível para a manutenção de hierarquias e poder. Seja como mãe ou como amante, Odete constrói para si uma persona autoritária, que encara a vida como um tabuleiro com peças a sua disposição. Nesse sentido, não constitui um matriarcado, pois mantém relações de poder de um sistema vigente, conservador e colonial. Odete é o patriarca dos Almeida Roitman.

Há, no entanto, uma mãe intermediária a essas duas protagonistas polares: diferente de Odete e Raquel, que vivem aproximações e distanciamentos com os filhos, Celina está sempre às voltas com os rebentos que — como Odete faz questão de lembrar — não são seus. Nathália Timberg encarna uma das figuras mais comoventes de Vale Tudo, justamente porque é essa protagonista silenciosa, essa tia que, na verdade, é uma mãe camuflada, cuja afetividade genuína interdita chantagens e tramoias. Preocupada com Afonso, é Celina quem desmascara Maria de Fátima, assim como é ela quem, geralmente, lida com as crises de Heleninha, cujo alcoolismo tem um desenho muito revelador — Helena volta a beber com a chegada de Odete e para quando a vilã sai de cena. Diferente de todas as outras, a maternidade de Celina — mesmo não biológica e não devidamente reconhecida — é persistente, ininterrupta, inabalável. Nesse sentido, ainda que antagonize Maria de Fátima, Celina é a única a se preocupar com a golpista quando é revelado que o filho de Fátima não é de Afonso. É ela também que, quando ciente da verdade, expulsa Odete de casa, sugerindo que a irmã deixe o país (um dos muitos embates entre Timberg e Segall, sempre em grandes cenas). Ironicamente, nessa nova triangulação de mães, Celina é a única que não têm desejos próprios. Ela atravessa a trama sob essa maternidade benevolente e cuidadora, que se estende inclusive a Raquel, com quem se associa (corroborando Fátima, já que a prosperidade de Raquel conta com talento, mas também com a sorte dessa amizade).

Sob essa tríade de mães — todas com maternidades incompletas, de alguma forma —, as maternidades de Fátima e Heleninha se projetam atravancadas. Criado pelo pai, Marco Aurélio (Reginaldo Faria), Thiago, muitas vezes, tem uma preocupação paterna com a mãe. Fátima, por sua vez, não titubeia em vender o filho por 25 mil dólares. A criança volta a sua guarda, por obra de Raquel, mas Fátima encerra a trama deixando-a aos cuidados da mãe, para poder partir para um novo golpe. Para Raquel, é sinal de que “Fátima não se modificou” (como dizem os personagens), mas se pensarmos em Fátima como o passado de Odete — a mãe capaz de incriminar a própria filha para manter-se como pai daquela casa —, é possível vislumbrar na renúncia, uma proteção, um ato de amor. Para além da questão sobre honestidade, outra, mais subterrânea, se instala: a maternidade vale a pena nesta que continua como uma colônia de exploração patriarcal? Vale a pena ser mãe numa pátria que, reiteradamente, interdita a ideia de mátria? Vale a pena gestar, parir e criar nestas terras? Vale a pena ser mãe — e amar como mãe — no Brasil?

Um Vale Tudo permeia esses diferentes amores de mães, dos verdadeiros aos encenados, dos mais evidentes aos mais intrincados. Na novela de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, a máxima “ser mãe é padecer no paraíso” pode ser reduzida a uma intransitividade do verbo; é, simplesmente, padecer. Até porque o Brasil de Vale Tudo está longe de ser um paraíso.