por Álvaro André Zeini Cruz

A cena mais comovente de “Alvorada” não é com Dilma Rousseff. É com Marly Ponce Branco, apresentada pelo documentário como ex-assessora pessoal da Presidenta. No início da sequência, Marly aparece ao telefone, requisitando a alguém do staff que traga mais vinho. Ela prepara o que parece ser uma pequena recepção para Dilma, que está prestes a voltar daquela conhecida sessão em que se dignou a dar explicações aos encenadores surdos do Senado. A chegada de Dilma não é vista, mas ouvida da antessala em que Marly está. Ante ao bater das taças e aos aplausos, Marly é vista à distância, da mesma maneira como ela espiona a recepção que ajudou a preparar. Contagiada pelos brindes, Marli ergue uma taça própria e, segregada daquele encontro político, brinda com o ar. Um outro assessor (ao que parece) se solidariza e, ainda que com atraso, vai ao encontro de Marly com uma taça. Marly, então, volta a bisbilhotar da porta, deixada de fora não exatamente por Dilma ou por qualquer outro político ali, mas por uma força palaciana que parece impor uma mise-en-scène do poder. Ironicamente, esse jogo de cena, que antecede e ultrapassa o próprio filme, separa a última Presidente da República eleita pelo Partido dos Trabalhadores dos próprios trabalhadores Alvorada. São essas cenas – que talvez sejam atos-falhos – que trazem algum frescor ao filme de Anna Muylaert e Lô Politi.
Isso porque o registro de bastidores traz pouca novidade se comparado aos filmes anteriores sobre o golpe de 2016. As cenas em que Dilma se reúne com entidades ou prepara sua defesa são burocráticas, no sentido de não terem interesse pelos momentos em si; basta que uma ou outra lasca apareça na montagem. Uma humanização de Dilma se efetiva, mas a própria Presidenta brinca – afinal, se ela não é humana, é o que? Nessa toada, “Alvorada” se preocupa em retratar a inteligência e a boa formação intelectual de Dilma, mas acredito que nenhuma dessas coisas é ponto de dúvida para quem se propõe a ver o filme (o que não significa que o governo de Dilma Rousseff não possa ser uma questão a esse mesmo espectador).
Fato é que “Alvorada” parece querer mostrar ao leitor de Whatsapp – aquele que até hoje se regozija com o famigerado discurso da mandioca – que Dilma Rousseff é leitora de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Saramago, e que tem um grande conhecimento histórico do país. Nada disso é novo. Reveladora de verdade é a cena com Aloísio Mercadante em que a tão falada “dureza” da Presidenta desponta. Essa “rispidez”, no entanto, não aparenta ser do trato das relações interpessoais imediatas, mas algo que atravessa da institucionalidade do cargo ao equilibrismo feito por uma mulher sobre essa corda-bamba atada por homens brancos e velhos (esse último adjetivo na acepção mais ampla, que, inclusive, governa o país hoje).
Pode não ser proposital, mas é só quando Dilma deixa o Palácio que os trabalhadores o ocupam de fato, circulando livremente por todas as camadas do plano, não só pelas beiras ou na profundidade de campo; ou, pelo menos, é só aí que “Alvorada” os registra dessa forma. O que fica documentado (o que não significa que essa era uma verdade) é que os ritos e as disposições da política e de seus prédios são reflexos do abismo que separa povo e poder. E se são inegáveis os vários avanços sociais durante os governos Petistas, o que “Alvorada” faz – creio que sem querer – é um retrato de campos e contracampos, que replica uma dicotomia rigorosa dentro desse ambiente de poder. No fundo, as divisórias que impedem Marly de adentrar a sala principal para brindar com sua presidente, não são tão diferentes daquelas que impedem Dilma Rousseff de morar, de governar, de viver. Assim, não se trata de um documentário sobre o golpe, mas de um filme sobre sobrevivências segregadas sob um teto que oprime porque assim foi alicerçado para. Um filme não sobre a expulsão de uma inquilina pelos locatários do poder, mas sobre a manutenção dos colarinhos brancos em compasso com a potencialização dos uniformes terceirizados, que tanto aparecem em “Alvorada”. Dilma diz que não crê no mal, mas talvez Temer é que estivesse certo: o Alvorada é mal assombrado, talvez porque seus tijolos sejam feitos dessa matéria.
Por fim, a cena síntese é também uma pequenina cena-ato-falho que envolve a própria diretora: entretida numa conversa com assessores, Anna Muylaert demora a notar o garçom que lhe estende algo na bandeja. É um instante volátil, mas simbólico num filme que registra as fronteiras de um palácio arquitetado, erguido, coberto e acabado por Brasis que não se misturam.