por Álvaro André Zeini Cruz

Tenho para mim que nossa luta, diária e hercúlea, é contra a mediocridade, essa condição que nos assombra e a qual tendemos, cada um de nós. Em Afire, Christian Petzold nos coloca junto a um sujeito que parece ciente desta sina e obcecado pela luta. Leon (Thomas Schubert) se isola — ou tenta — para suspender a vida ao redor e, assim, conceber uma vida escrita, por ele intitulada Club sandwich. A literatura é, para ele, a prova material de sua sensibilidade, sua anti-mediocridade. Mas Leon só consegue o retiro bucólico graças a Felix (Langston Uibel), cuja amizade é cercada de ambiguidades; vide o embate na floresta, com tudo o que cabe entre o brincar e o brigar.
Fato é que Felix quer a companhia de Leon, mas tudo o que Leon quer é estar só, consigo e com as palavras que ele quer que saiam. Mas a casa de veraneio terá que ser dividida com Nadja (Paula Beer), essa intrusa que se instala entre ruídos e relances, misteriosa tal qual Undine, personagem de Beer no Petzold anterior. Os esforços de Felix por nacos da atenção de Leon logo transitam para Devid (Enno Trebs), e a troca dos casais se completa num corte desconcertante para o contracampo. Por motivos misteriosos, Nadja insiste em estar perto de Leon, assim como Felix outrora insistira. Só que Leon não é um personagem de Rohmer, inseguro, mas sedutor; é um rapaz que, paralisado pelo medo da mediocridade, se perde na luta contra seus moinhos internos. Antipático, Leon é também o anti-Gaspard, anti-François, anti-Delfini, porque, em Rohmer, os personagens ora velejam, ora pairam pelo vazio, mas há sempre um perambular que nos inquieta. Para Leon, o vazio não é objeto, é movimento próprio, que ele faz sem se dar conta, sem perceber que só o que externa é a suposta aversão que sente pelo mundo. Leon esvazia-se de tudo, menos das palavras precisas.
Ora, por que querer manter-se por perto de um sujeito como este? A pergunta desdobra o interesse recorrente nos filmes de Petzold — o mistério entorno daquilo que nos une, que nos separa, que nos reúne. É possível desvendá-lo, encontrar uma verdade que sustente os laços impossíveis, os encontros improváveis? Por que Nadja se dispõe a ler prontamente o livro daquele homem desagradável? Por que Felix quer a companhia desta amizade que só lhe retribui grosserias? Que forças obrigam Nadja, Felix, Devid a orbitarem alguém que, diante da beleza da poesia, só consegue demonstrar ressentimento e rancor?
“Gostaria de saber seu nome, sua terra natal e seu clã”, pergunta a personagem do poema de Heinrich Heine, na voz de Nadja. “Meu nome é Mohammed, sou do Iêmen, e meu clã são os Asra, os que morrem quando amam”, replica Nadja como outro, encerrando a recitação. O poema é posto nesse almoço-sarau, que acontece informalmente quando há um bem-vindo desvio da obra-objetivo (o Club sandwich) para que se vá ao encontro das fotografias de Félix, da verdade de Nadja. Tanta verdade, que pedem bis. Da repetição, o último verso retumba, fazendo coro aos insetos e aos helicópteros que sobrevoam a área em risco de incêndio: “os que morrem quando amam”. Isto é, os que morrem quando acontece o inevitável, aquilo que é só questão de tempo. Todos nós; até Leon.
Tempo que não necessariamente é sentido, porque salta, como a elipse que oculta o ato afetuoso de Felix para revelar Leon cochilando sob uma coberta na areia (e é justo que haja um salto espacial, uma vez que a supressão temporal age sobre o olhado, mas também sobre quem olha). Os dias pingam (são quantos, afinal?) entre refeições ao ar livre, mergulhos, raquetes que, como o mar, cintilam à noite, enquanto o carro quebrado aguarda um tempo que será dado pelo fim. Porque, há salva-vidas à beira da praia, mas a ação contra o vento e o fogo não é mais de prevenção, e sim, de controle de danos: o voo solitário do helicóptero sentido ao céu alaranjado contrasta o grupo de rostos noturnos, impressionados diante desse apocalypse soon.
Se em Undine, a água é a substância cuja corrente promove encontro, desencontro e reencontro, Afire é um estudo sobre as faíscas e as flamas que irrompem das escuridões individuais à luz desses dias aparentemente lânguidos, mas com verdades duras à espreita. É só quando se entrega à consciência deste fenômeno que Leon consegue se desvencilhar das palavras precisas para encontrar as palavras precisadas. Antes, porém, há as fotografias de Felix — costas, rostos, o mar. Ironicamente, num filme que se acende desde o título, um rosto fotografado, decalcado pela luz, é falta, elipse de novo. Talvez porque fosse crise desde antes da captura: como fotografar frontalmente esse olhar ao mar sem que se olhe para a câmera?, provoca Leon.
O olhar que falta está na contraparte que o precede, em Undine, quando a permanência dos planos nos convida a mergulhar, antes no olhar de Beer (sublinhado pelo ombro), depois, no de Franz Rogowski. Ambos encaram a câmera no filme em que Petzold mergulha em águas misteriosas para ver, sob um único faixo de luz, o toque entre as mãos. Lá, a água move; neste, não há mergulho, nem essa permanência franca do olhar, mas a aceitação dos mistérios, das ocultações, das fumaças. Porque, em Afire, a verdade derradeira não está no livro, na poesia, nas fotos. Está no fogo, que arde, une e mumifica. Os que morrem quando amam.