por Álvaro André Zeini Cruz

Jennifer Lawrence (como Maddie) é contratada por Matthew Broderick para seduzir um adolescente que não está curtindo a vida adoidado. É inevitável o trocadilho sobre a escalação nada aleatória de Broderick, cujo personagem, na casa dos 50, está preocupado como filho superprotegido, amostra de uma geração resignada e confortável na superproteção. Percy (Andrew Barth Feldman) é o rapaz submetido a um estratagema que está longe de ser inédito no cinema. Frescor mesmo é a presença de Lawrence, atriz em voo ascendente que surpreende ao escolher estrelar esta comédia com notas autorais. A ideia aparente é fazer um filme dos Farrelly (ou de Mottola) com uma mulher ocupando esse protagonismo típico, que vai do bastard ao lovable loser. Lawrence encara o desafio sem pudores e tem em Feldman um parceiro à altura tanto no humor nonsense, quanto nos momentos mais sentimentais. Mas é nessa equação que está um dos problemas do filme: se Lawrence e Feldman ditam quase sempre o ritmo da comédia, há brechas em que roteiro e direção colocam as coisas onde não deveriam estar — o nonsense, quase sempre divertido, reaparece num ato inoportuno, enquanto as notas de dramédia são quase staccatos, que não se alongam quando deveriam perdurar.
É provável que esse descompasso surja de uma fragilidade temática: Que horas eu te pego? critica uma geração enredada por telas e desinteressada (seja por insensibilidade ou temor) por quase tudo, incluindo sexo (quando Maddie invade os quartos de uma festa de high school, questiona se ninguém mais transa ao se deparar com um bando de adolescentes vestidos atrás dos celulares erguidos). A certa altura, porém, embarca num discurso dos envolvimentos emocionais/espirituais, como se estes se desassociassem completamente do físico (o que é um contrassenso em um filme que faz questão de mostrar Lawrence nua). Falta sexo em Que horas eu te pego?, seja como cena ou mesmo como elipse, e a inexistência do ato colabora para que o filme de Gene Stupnitsky recaia no mesmo recato de uma geração que vê as relações amorosas com pouco pragmatismo, pouco desejo e muita utopia. Rende-se a uma visão pueril e pudica, inexistente nos melhores Farrelly ou Mottola, isto é, nos filmes em que parece mirar. Contenta-se com um bromance quando tudo indicava — e pedia! — um romance de descobertas sentimentais e carnais.
Se a comédia de Stupnitsky trata essa adolescência contemporânea e digital (de digitais que preferem o touch ao toque, a películas [de vidro] à pele), I Like movies, de Chandler Levack, volta vinte anos para encontrar um protagonista que parece ainda anterior, pois tem o DNA de John Hughes. Nesse sentido, o filme se interessa menos pelo gap geracional do que por um entretom das representações adolescentes combinadas em Lawrence Kweller (Isaiah Lehtinen, uma revelação), garoto gordo e falastrão que personifica o clube dos cinco num corpo só. Tema comum no coming of age, a solidão desse personagem é progressiva, aparecendo no filme tanto como prenúncio, quanto como consciência de dias derradeiros em sentidos diversos — porque encerram o ensino médio, e também uma espécie de Zeitgeist de um gênero aberto em Hughes e pontuado em Elefante, de Gus Van Saint (lançado justamente em 2003). É numa escola no subúrbio de Toronto que Levack lança seu protagonista solitário, que alimenta sua personalidade narcisista com os espelhos em que se reconhece: os filmes. Uma solidão cinematográfica.
Contrariando a mãe pé-no-chão e as economias familiares, o conflito é impulsionado pelo desejo de deixar o Canadá para cursar cinema nos Estados Unidos, na NYU; o que carrega tanto um menosprezo cultural quanto a necessidade de mover-se para longe dos traumas — as amarras financeiras, o pragmatismo da mãe, o suicídio paterno. Assim, Kweller se refugia nos filmes em busca de um sonho que é tão concreto a ele — e só a ele! — que o isola do mundo ao redor; tanto que, quando o melhor amigo tenta embarcar nesse sonho, Kweller o rejeita, quer a ilusão só para si. Entretanto, antes de atravessar qualquer fronteira, o rapaz é levado ao único lugar que lhe é possível: uma releitura de Blockbuster, cujo nome bastante simbólico é Sequels. A loja — construída não como um alicerce nostálgico, mas como uma nostalgia de background — é um lugar paradoxal, já que, se para Kweller aponta como vislumbre do que ele deseja (e que, para ele, está na sequência), para a gerente Alana (Romina D’Ugo) é um local de permanência, tal qual as imagens estáticas nas capas dos DVDs (não vemos imagens em movimento na Sequels).
É do embate entre esses dois personagens que Levack produz cinética, especialmente em cenas baseadas na fala, como no longo monólogo em que Alana revela seu próprio trauma a Kweller; sofrimento produzido, não na videolocadora, mas no coração dessa indústria dos sonhos (que, como toda indústria, só se preocupa em evitar ou tratar traumas quando a ocorrência deles põe em risco a produção e, consequentemente, o lucro). Sob o aspect ratio 4:3, e uma fotografia sóbria que remete ao despojamento do vídeo (mas sem essa cara de filtro retrô que abunda desde esta onda de comercialização da nostalgia), a cena se desenrola num campo e contracampo contrastado nos movimentos: de um lado, Kweller, sob o plano fixo, está sentado no chão, como uma criança que, pela primeira vez, ouve sobre a possibilidade do cinema como pesadelo. Do outro, o contracampo que começa emulando a subjetiva do garoto, mas que avança, num travelling sutil, conforme Alana narra a violência sofrida nos bastidores de um filme. Nesse avanço em contra-plongée, a câmera corrige em direção à prateleira dos filmes sempre que Alana faz o gesto automático (e simbólico) de arrumar as caixas, que guardam aquilo que, de certa forma, desarrumou sua vida. É assim, curvada sob a personagem, olhando-a de baixo para cima, assistindo esses olhos imersos em vazio e desdém, que a câmera — e Kweller, e nós — ouvimos a frase lancinante — I hate movies.
A revelação de Alana contrapõe a frase de Kweller, título do filme. Kweller, que ama Kubrick (o rigor, a simetria) e Paul Thomas Anderson (a técnica no limiar do exibicionismo), encontra no filme de formatura do amigo (a quem subjugava), um olhar — não perfeito, nem técnico, mas um olhar, muito mais do que ele próprio tem. Kweller não está nem diante, nem atrás da câmera do amigo abandonado, porque estava na locadora, que, por sua vez, assume esse lugar de limbo, que leva, não à utopia, mas ao sonho alcançável, possível, (de certa forma, anti-cinematográfico). Levack faz um filme incomum, em que a videolocadora não é nostalgia barata, e a cinefilia não é um valor intocável; pelo contrário, ela é o defeito, o misbehavior dessa adolescência que se reflete nos filmes, e que, por isso, olha demais para si e pouco ao mundo. Em I Like movies, Chandler Levack mostra aquilo que sabemos: que a cinefilia é uma vida. Mas não se pode perder de vista que, mesmo nela, há altos e baixos; muito menos que esta vida está circunscrita em outra. Maior. Muito maior. E isso é basilar para que se escute, fale, olhe e filme.