por Álvaro André Zeini Cruz

Como filmar um último show?
Como filmar A Última Sessão de Música de Milton Nascimento?
A câmera passeia entre a multidão e pelas telas dos celulares, que recortam e replicam o palco. O Mineirão é visto em aéreas vertiginosas e gruas elegantes nas aproximações, afastamentos e circularidades. Planos detalhes pontuam os dedilhados, mas não se pode descuidar da pirotecnia tecnológica que arremata esse tipo de espetáculo. Espetáculo, palavra cuja etimologia latina remete à “vista”, mas que na televisão se vê em planos precisos – longos o suficiente para um vislumbre detido, curtos o bastante para não entediarem o pessoal de casa (que também zapeia pelo streaming). Até porque é preciso que os (re)lances deem conta não só dos músicos, mas do público local, das luzes, dos cartazes, da arquitetura, dos bastõezinhos de néon, e, principalmente, do potencial de produção (e de pretensão) televisivo, que não se acanha em sua (vã) tentativa de aproximar o espetáculo televisionado da vivência in loco. A partir desse check list de imagens, a televisão crê transpor a experiência do show de maneira quase plena e fidedigna; consegue, no máximo, a boa burocracia de uma decupagem que fica entre o evento esportivo e a publicidade. Afinal, nem todo mundo é Scorsese filmando os Rolling Stones (para o cinema!). Mas havia o homem sentado no meio do palco. E isso muda tudo.
O diretor de corte tenta estilhaçá-lo, mas o homem no centro do palco é Milton Nascimento: o próprio estilhaço, aquele que faz a Travessia, não de si, mas de nós – Milton nos atravessa. Não um atravessamento, e sim o atravessamento, derradeiro, planejado por quem, aos 80 anos, alinhava “Eu não quero mais a morte / Tenho muito o que viver” a Encontros e Desencontros. Um fim, não o fim, pois está gravado, streamado, mas, sobretudo, Encantado. Encantado, como se uma força sobrenatural houvesse sido invocada pelos Tambores de Minas. Não um gênio, um Deus; bem disse um dos amigos do Clube da esquina: é assim que Milton surge nos dois planos que bastariam ao show televisionado.
Campo: close-up médio, frontal, revelando o olhar baixo e parte do figurino de Ronaldo Fraga, inspirado em Bispo do Rosário. É sob este enquadramento que, após “juventude e fé” – verso final de Coração de estudante – Milton completa “viva a democracia!”. É também por este set-up de câmera que a boca crispa quando dedica o show à Gal Costa. O contracampo faz jus à denominação; opõe-se tal qual o manto solar e o fardão noturno-enigmático: na outra ponta do eixo, o plano geral mostra a multidão no background, e Milton, de costas, como única figura delineada, preenchida pelos pássaros, pela boina e pelas luzes que o transformam num ser entre corpo celeste e homem vaga-lume. Uma entidade. É justamente essa câmera, com textura mais simplória, que capta o tremor dos átomos, moléculas, pernas, braços, abraços e cordas (vocais e instrumentais) que reverbera no palco e na imagem; vibração que tem como fenda tectônica, emanação primordial, o corpo do homem sentado. É este plano – pouco frequente, aliás – o que mais se aproxima daquilo que a transposição televisiva crê fazer o tempo todo: transmutar o real pela imagem. Junto a ele, bastava o close-up médio, os ombros, os olhos e, principalmente, os lábios na ambiguidade da emoção, uma retroalimentação entre choro e o riso. O resto só não é penduricalho porque havia ali Bituca. Havia, entretanto, um show que poderia ser filmado em dois planos. Pois havia ali Milton Nascimento.
Como filmar A Última Sessão de Música de Milton Nascimento?
Possuindo a estranha mania de ter fé na vida. Às vezes, é o que falta às imagens.